Hoje escrevemos sobre um dos temas mais centrais no que diz respeito às questões da deficiência enquanto questões de cidadania. Falamos do direito a não ser discriminado, ou seja e de uma forma simples, a não ser tratado de forma diferente, por causa de uma deficiência.

Sobre esta matéria, começamos por salientar que um dos direitos fundamentais de todo o ser humano é o direito a ser tratado de forma igual, só sendo permitidos tratamentos desiguais na medida em que o imponham as especificidades particulares de cada caso. Ou seja, o direito de igualdade não prevê que todos devam ser tratados da mesma forma, mas sim que todos devam ser tratados da forma mais igual possível, atendendo às especificidades de cada pessoa e do seu contexto. Assim, numa fórmula resumida, poderíamos dizer que o princípio da igualdade é respeitado sempre que se trata de forma igual o que é igual, e de forma diferente o que é diferente, na medida dessa diferença ou, acrescentamos nós, na medida em que essa diferença seja apta, necessária e proporcional para restabelecer, tanto quanto possível, a igualdade. É isto mesmo que permite, por exemplo, que uma discriminação positiva não seja, necessariamente, punível como discriminação, como é também isto mesmo que permite que nem todas as discriminações negativas sejam, necessariamente, punidas como discriminação. Concretizando com exemplos práticos: se é aceitável que uma pessoa cega seja impedida de conduzir, autonomamente, um automóvel na via pública, porque no estado atual da tecnologia a prática autónoma da condução na via pública requer efetiva e decisivamente o uso da visão, já não é aceitável que uma pessoa cega seja impedida de ler um determinado livro, ou documento, que se encontra, num estágio final de produção, em suporte acessível (por exemplo, suporte digital), ou que pode ser transposto, sem custos adicionais relevantes ou sem perdas de informação ou de tempo significativas, para qualquer suporte acessível livremente escolhido pelo candidato.

O princípio da igualdade, e a sua consequência lógica – a proibição da discriminação – resultam assim dos mais elementares textos de direito internacional, tendo assente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Carta Europeia dos Direitos Humanos, e, como não podia deixar de ser, na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Também no texto constitucional português, no artigo 71.º, o princípio da igualdade de tratamento surge referenciado às pessoas com deficiência. Esta foi, de resto, uma das primeiras preocupações relacionadas com a deficiência, conforme assumidas de forma transversal pela União Europeia. Não admira por isso que a lei que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência seja, em Portugal, talvez uma das primeiras leis transversalmente aplicáveis à deficiência. Será, certamente, uma das primeiras grandes leis relativas à deficiência no Século XXI, a par da Lei de Bases da Habilitação, Reabilitação e Participação das Pessoas cm Deficiência (Lei n.º 38/2004).

A proibição e punição da discriminação está consagrada, em Portugal, na Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto, regulamentada pelo Decreto-lei n.º 34/2007, de 15 de fevereiro. Nos termos da referida lei, é proibida e punida a prática de quaisquer atos que, em razão da deficiência, violem o princípio da igualdade. Mas a lei vai mais longe: é também proibida, constituindo igualmente prática discriminatória, qualquer omissão que conduza a uma violação do princípio da igualdade. Do que falamos afinal? Não apenas de uma atuação qualquer que tenha por efeito a violação do princípio da igualdade, especificamente em razão da deficiência, mas também daquelas situações em que alguém, devendo ter atuado de forma diferente, não o fez, sendo que essa omissão de atuação levou também a uma violação do princípio da igualdade, em razão da deficiência. A lei diz ainda que as atuações ou omissões podem ser dolosas ou negligentes. Quer isto dizer, simplificando, que não é preciso haver uma clara intenção de discriminar, de tratar de forma desigual. Basta que haja uma atuação, ou omissão, que tenha sido praticada sem que, quem a praticou ou quem omitiu a sua prática, tenha tido o cuidado que qualquer cidadão, em circunstâncias análogas, teria tido. Para se compreender do que estamos a falar, a lei enumera um conjunto de situações exemplificativas nos seus artigos 4.º e 5.º. Assim, para além de um artigo inteiro dedicado às questões da discriminação no emprego – a que adiante voltaremos de forma resumida -, a lei proíbe como prática discriminatória aquelas que, em razão da deficiência, violem o princípio da igualdade, dando vários exemplos. Para o que aqui nos interessa, citamos apenas alguns: a recusa de fornecimento de bens ou o impedimento de fruição de serviços; o impedimento ou a limitação do acesso e exercício de uma qualquer atividade económica (por exemplo, emprego por conta própria, criação de estabelecimento comercial ou industrial, impedimento de obtenção de uma licença necessária a uma atividade económica específica, entre outras); a recusa ou condicionamento de compra ou arrendamento de casas ou terrenos, bem como a recusa ou condicionamento de concessão de crédito à habitação e a recusa ou penalização na celebração de quaisquer contratos de seguros; a recusa ou limitação de acesso a edifícios ou a locais abertos ao público, bem como a quaisquer transportes públicos; a recusa ou limitação de acesso a cuidados de saúde ou à educação, incluindo meios compensatórios adequados (designadamente, mas não só, as popularmente conhecidas como ajudas técnicas); a limitação ou condicionamento do exercício de direitos; a ameaça ou ofensa, direta ou indireta, baseada na deficiência; e a limitação do acesso às novas tecnologias (incluindo, designadamente, a falta de recursos de acessibilidade em equipamentos, sítios web, entre outros).

No caso das discriminações em razão da deficiência no âmbito do acesso e progressão no emprego, o legislador também dá alguns exemplos. São práticas discriminatórias no que toca ao emprego, para além das que já estão previstas como tal no Código do Trabalho, a adoção de procedimento, medida ou critério que subordine a elementos de natureza física, sensorial ou mental a oferta de emprego, a contratação ou a cessação do contrato de trabalho, bem como a inclusão de especificações ou preferências ligadas à deficiência em ofertas de emprego que possam conduzir à discriminação em razão da deficiência. De notar que, no caso particular da discriminação no emprego, a adoção de algumas práticas baseadas na deficiência pressupõe sempre que haja um pedido de parecer prévio ao INR, para aferir se a medida, que pode ser discriminatória, é ou não realmente admissível. Por exemplo, parece-nos razoável que, no estado atual da evolução tecnológica, uma oferta de emprego para motorista de pesados pressuponha boas capacidades visuais, mas não nos parece razoável que uma oferta de emprego para administrativo as pressuponha. Claro que, na prática do dia-a-dia, os exemplos não são todos tão claros como os que aqui colocamos, e daí justamente a necessidade de solicitação de parecer ao INR, nesta como noutras matérias – como adiante se verá.

Uma das grandes novidades da legislação portuguesa de combate à discriminação, muito no espírito do que já estava previsto desde 2003 no Código do Trabalho e, ainda que indiciariamente, na Diretiva 2000/78/CE, primeiro grande instrumento europeu de combate à discriminação em razão da deficiência – mais vocacionado para o ambiente do mercado de emprego e de trabalho -, é a designada inversão do ónus da prova. Explicado de forma simples, normalmente quem alega um facto tem que o comprovar. Ou seja: se uma pessoa com deficiência alegasse estar a ser discriminada em razão dessa mesma deficiência, era ela que tinha que comprovar que não só estava a ser tratada de forma diferente, mas que a razão de ser do tratamento diferenciado residia na deficiência. Com a Lei n.º 46/2006 o esquema inverte-se um pouco. Quem alega ser vítima de discriminação tem que sustentar a alegação com factos que comprovem haver indícios de que essa discriminação se pode basear na deficiência. É a quem é acusado que cabe comprovar que não está a discriminar em razão da deficiência, ou que, estando, tal discriminação é admissível, não constituindo por isso uma prática proibida pela lei.

Outra das particularidades que nos parece importante reforçar, relativamente a esta lei, é o facto de não ser apenas punida a discriminação direta. Assim, há que recorrer ao artigo 3.º para percebermos o que é discriminação direta e o que é discriminação indireta. Sempre que uma pessoa com deficiência seja, tenha sido ou venha a ser, tratada de forma diferente de outra pessoa em situação comparável, independentemente de esta outra pessoa ter ou não qualquer outra deficiência, falamos de discriminação direta. Por outro lado, sempre que se verifique uma discriminação, mesmo que baseada numa disposição, critério ou prática aparentemente neutros – isto é, que não aparentam ter nada a ver com deficiência -, colocam, na realidade, a pessoa numa situação discriminatória inadmissível, falamos de discriminação indireta.

Notamos por fim que, como resulta do próprio texto da lei, a prática discriminatória pode ser oriunda de pessoas singulares ou pessoas coletivas (ou seja, empresas, associações, fundações, organismos públicos, etc.). Isto quer dizer que tanto pode ser autora de discriminação uma empresa, como qualquer dos seus trabalhadores ou responsáveis. Por isso, pode ser crucial saber, por um lado, quem é o real autor da discriminação, e por outro, se o faz enquanto cumpridor de ordens discriminatórias de uma empresa ou organismo, ou se o faz por sua decisão.

Sem entrar em grandes detalhes mais, diremos ainda que a lei prevê que um facto, que seja proibido por outra lei, possa também ser sancionado a título de discriminação em razão da deficiência. Assim, se uma pessoa com cão de assistência é impedida de entrar num estabelecimento ou num meio de transporte, isso constitui não só uma violação ao Decreto-Lei n.º 74/2007, mas também uma violação desta lei de proibição e punição da discriminação em razão da deficiência, uma vez que é em razão da deficiência que ela se faz acompanhar de um cão de assistência. Isto sucede porque a própria Lei n.º 46/2006 estabelece a aplicação de sanções, ou pedidos de indemnização, sem prejuízo do que se encontre previsto noutra legislação.

A quem apresentar queixa por discriminação?

Em princípio, o preenchimento de queixa nos livros de reclamações, no caso de estabelecimentos ou empresas que estejam obrigados a tê-los, seria suficiente. No entanto, o INR tem deixado escrito, nos relatórios anuais que faz de acompanhamento à aplicação da lei, a necessidade de serem apresentadas queixas por discriminação em razão da deficiência por outras vias que não o livro de reclamações. Isto pode indiciar que as entidades inspetivas pouca sensibilidade terão para as analisar nestes suportes, o que não deixa de ser uma visão preocupante sobre o exercício do direito de reclamação. De toda a forma, nem sempre nos queixamos de entidades – como vimos, também nos podemos queixar de pessoas singulares. Aí, não havendo competência contraordenacional, parece-nos que a única via seria a via dos tribunais – que, em nossa opinião, é claramente injustificada quando, muitas vezes, mais do que uma indemnização o que se pretende obter é mesmo a condenação de alguém a agir de uma outra forma não discriminatória. De toda a forma, na era da simplificação administrativa já pode fazer uma queixa eletrónica diretamente ao INR por violação da Lei n.º 46/2006, isto é, por discriminação em razão da deficiência. Pode fazê-lo por e-mail para o endereço geral do INR ou diretamente no site daquele organismo, em www.inr.pt – encontra um link designado “Lei não discriminação”, onde tem um formulário para poder apresentar a sua queixa. Essencial é que, depois, vá dando andamento à mesma, designadamente sabendo para quem ela foi encaminhada, bem como perguntando, junto da entidade competente, qual o andamento dado à mesma e os respetivos fundamentos. Este é também um trabalho que a ACAPO, como outras organizações não-governamentais de pessoas com deficiência, pode ir acompanhando, pelo que, se assim o entender, pode igualmente solicitar o envolvimento da ACAPO no caso.

Uma última nota para a prática de aplicação desta lei. Consultados os relatórios até agora produzidos pelo INR, ficamos com a ideia de que muitas das entidades que têm competência sancionatória não a exercem, ou não a exercem adequadamente. Uma leitura dos relatórios faria pensar que não há, na realidade, situações de discriminação. Mas tendo em conta que nem o INR é consultado na esmagadora maioria dos casos, mesmo naqueles em que se conclui pelo arquivamento dos processos, questionamo-nos seriamente se quem aplica as coimas está ou não ciente do que é, realmente, discriminação em razão da deficiência, visto que, presume-se, não será obrigado a ter conhecimentos específicos na matéria ligada às pessoas com deficiência. A questão é que esta é, também, uma das fragilidades práticas da aplicação da lei, a par com a reduzida formação da magistratura judicial para esta problemática – é sintomática a falta de sentenças conhecidas em Portugal que tenham aplicado a Lei n.º 46/2006, contando-se pelos dedos de uma mão as decisões de tribunais superiores que tenham sido chamadas a entender e aplicar a Lei n.º 46/2006 e, nos caos que conhecemos, nem sequer foi invocada a questão da discriminação direta.

O assunto da proibição e punição da discriminação em razão da deficiência não se esgota, como já se percebeu, nestas linhas de escrita – nem do ponto de vista jurídico, e muito menos do ponto de vista sociológico ou antropológico. No entanto, é de assegurar os nossos direitos que se trata nesta coluna, mais do que qualquer outra matéria. É por isso este sem dúvida um dos temas centrais que aqui poderíamos abordar, razão pela qual fica a promessa – e o desejo - de a ele voltarmos em futuras publicações.