Assinalou-se no mês que passou mais um Dia Internacional da Bengala Branca. Esta celebração, quase a fazer 50 anos, lembra a bengala branca como símbolo da independência, liberdade e confiança das pessoas cegas. Mas no direito, o seu significado é bastante mais restrito.

Com efeito, a primeira vez que este dia foi comemorado foi em 1964, nos Estados Unidos, após uma proclamação do Senado norte-americano. Na altura, ainda antes de o dia se tornar internacional, a bengala era lembrada como símbolo mas também como identificador, recomendando-se aos automobilistas que prestassem atenção particular às pessoas cegas que a utilizavam nas suas deslocações diárias. Já bastante antes, em Portugal, as autoridades reconheciam o crescente número de cegos que eram forçados a deslocarem-se sozinhos pelas ruas, fosse por via da sua vida particular ou profissional. Assim, a Portaria 7546, de 14 de março de 1933, cometia aos agentes das forças de autoridade o dever de auxiliarem estas pessoas cegas nas travessias mais perigosas, devendo ainda prestar-lhe os esclarecimentos que estas lhes solicitassem. Para tanto, prescrevia a citada Portaria que as pessoas cegas se fariam acompanhar de uma bengala de punho recurvado e de cor branca, bengala essa que só os cegos poderiam utilizar. É lícito discutirmos se esta portaria ainda está ou não em vigor, e se é verdade que não conhecemos nenhum outro diploma que expressamente a tenha revogado, também é verdade que ela hoje mereceria, pelo menos, uma interpretação atualista. Parece-nos, contudo, fora de qualquer controvérsia que, seja por determinação regulamentar ou por uso social, que entretanto ganhou caráter de costume, a verdade é que a bengala branca permanece associada ao seu uso exclusivo por pessoas cegas.

A preocupação do legislador com a travessia, por pessoas cegas, nas ruas mais movimentadas foi de resto incorporada, de forma a nosso ver discutível, na regulamentação relativa às acessibilidades na via pública. A alínea 3) do n.º 1.6.4 das Normas Técnicas para Melhoria da Acessibilidade a Pessoas com Mobilidade Condicionada, aprovadas em anexo ao Decreto-Lei n.º 163/2006 de 8 de agosto, especificam que nas passagens de peões com semáforos, entre outros requisitos, estes devem ser equipados com mecanismo complementar que emita um sinal sonoro quando o sinal estiver verde para a travessia de peões, mas tal apenas é obrigatório nos semáforos instalados em vias com grande volume de tráfego de veículos ou intensidade de uso por pessoas com deficiência visual. Restará saber o que é, em cada caso, considerado grande volume de tráfego de veículos, ou como se vai aferir se há ou não grande intensidade de uso dessas passagens de peões por pessoas com deficiência visual. O problema de base, no entanto, subsiste: enquanto noutros casos, igualmente na via pública, a legislação estabelece requisitos para que o espaço público seja totalmente usufruível por todos, no caso das pessoas cegas e em particular nas travessias de peões, a sinalização acústica apenas é obrigatória em alguns cruzamentos, esquecendo no fundo a função essencial dos semáforos – assinalar a autorização de atravessamento, de toda e qualquer rua, pelos peões. O diploma parece pois, partir de um princípio errado – o de que as pessoas cegas andam predominantemente nos mesmos sítios, ou nos sítios frequentados principalmente por pessoas cegas, e parece neste particular pouco conforme com as obrigações que impendem sobre o Estado português no que toca à acessibilidade e mobilidade pessoal das pessoas com deficiência, conforme prevista nos artigos 9.º e 20.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

O Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto, foi de resto recentemente alterado pela segunda vez. O objetivo dessa alteração centrou-se nas competências de fiscalização e de instrução dos processos de contraordenação aí previstos, as quais foram parcialmente transferidas para o Instituto Nacional para a Reabilitação, I. P. pelo recente Decreto-Lei n.º 125/2017, de 4 de outubro. Com efeito, na versão original do diploma as competências de fiscalização e de contraordenação no que toca às acessibilidades aos edifícios e espaços circundantes pertencentes à administração central e aos institutos públicos encontravam-se cometidas à Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Entretanto, em 2012 as atribuições da referida Direção-Geral foram repartidas por outras entidades, tendo estas ficado adstritas ao Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I. P. (IHRU, I. P.). No entanto, estas não constavam especificamente da lei orgânica daquele instituto aprovada em 2012, pelo que se verificou uma espécie de limbo quanto às competências de fiscalização e aplicação prática no que diz respeito à Administração Pública central. O Decreto-Lei de 2017 vem, finalmente, corrigir esse problema, cometendo tais atribuições ao Instituto Nacional para a Reabilitação, I. P., a quem de resto já cabia – e continua a caber – a coordenação das políticas nacionais destinadas a promover os direitos das pessoas com deficiência. Portanto, neste particular e em resumo, sempre que encontrar um local pertencente à Administração Central, incluindo institutos públicos, que não cumpra as regras de acessibilidade previstas no referido Decreto-Lei, já sabe a quem deve dirigir a sua queixa. Neste particular, incluem-se, entre outros, todas as instalações das Direções-Gerais, escolas diretamente pertencentes ao Ministério da Educação, esquadras de polícia, serviços como os registos civis, comercial ou predial, centros de segurança social, centros de saúde, entre muitos outros, mas não se incluem, por exemplo, os hospitais, universidades ou politécnicos, postos de correios, ou mesmo as gares ferroviárias ou aeroportos.

A alteração introduzida no Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto, pelo Decreto-Lei n.º 125/2017, resolve ainda outro problema, este relacionado com a competência de fiscalização e de aplicação de sanções nos casos de falta de acessibilidades nos espaços das autarquias. Por determinação expressa da lei, que a nosso ver já resultava mais ou menos implícita de outras normas do ordenamento jurídico, cabe agora à Inspeção-Geral de Finanças fiscalizar a aplicação do referido diploma pelas autarquias. Assim, queixas relativas à falta de acessibilidade ao espaço público em geral (ruas, jardins municipais, entre outros) passam a poder ser apresentadas à Inspeção-Geral de Finanças quando se trata de domínio público municipal ou de terrenos ou edifícios de propriedade dos municípios, bem como no caso de escolas primárias, por exemplo.

Como acima deixámos antever, o direito de aceder e circular livremente nos espaços e serviços públicos, ou abertos ao público, é um dos direitos consignados na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Passou por isso também, a nosso ver, a ser um direito equiparável a direito fundamental no ordenamento jurídico português. É certo que um direito, para ser exercido, tem que ser conhecido, mas também não é menos certo que as condições do seu exercício têm que ser suscetíveis de ser conhecidas pelos que dele podem usufruir. Com uma organização administrativa relativamente complexa, nem sempre será fácil saber perante quem apresentar queixa. No entanto, e atento também o papel aglomerador preconizado pelo novo diploma ao INR, I. P., julgamos prudente remeter todas as queixas que faça também para o Instituto Nacional para a Reabilitação. De toda a forma, como prescreve o artigo 41.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), se remeter uma queixa ou petição a órgão que não tenha, nos termos da lei, competência para o decidir, este deve remeter oficiosamente ao órgão que tenha competência para o fazer, dando-lhe conhecimento dessa remessa e valendo como data de apresentação a data em que apresentou o requerimento ou petição junto de tal organismo.