ACESSIBILIDADE

 

Libertem os passeios

Por Peter Colwell, Técnico de Acessibilidade na Direção Nacional da ACAPO

 

Há muito tempo as pessoas no poder reparam que existia vantagem em criar vias separadas para viaturas e peões, dado que algumas cidades da Grécia e Roma antiga já possuíam passeios. Eventualmente a ideia surgiu para facilitar a circulação das mercadorias, mas regra geral os historiadores dizem que a intenção era garantir a segurança dos peões. Esta boa prática, como muitas outras práticas daqueles tempos, foi esquecida no mundo ocidental até que a necessidade de construir passeios foi reconhecida novamente no norte da Europa no século XVIII. Curiosamente a zona pedonal foi feita utilizando lajes de pedra em vez dos paralelepípedos usados na estrada, o que significou mais conforto em andar no passeio do que na estrada. Os seus criadores reconheceram logo as caraterísticas essenciais de um passeio: deve oferecer segurança e conforto.

Qualquer cidade portuguesa de hoje é mais complexa do que Londres no século XVIII. Por baixo dos nossos passeios passam condutas e cabos e na superfície temos inúmeros postes e armários que asseguram infraestruturas inimagináveis duzentos anos atrás. O que não é claro é porque todos estes equipamentos têm de ser colocados no passeio, em particular quando uma data deles apenas serve para controlar e informar o trânsito. No nosso tempo colocar o poste dos semáforos no passeio parece ser a solução mais natural, mas se olharmos para fotos de antigamente o polícia sinaleiro estava no meio do cruzamento.

Para adotar uma expressão do mundo da informática, quando vamos introduzir mais um objeto numa rua parece que a solução default é colocá-lo no passeio (esta expressão moderna soa melhor do que a “lei do menor esforço”). Um exemplo recente é o parquímetro – um equipamento que, sem dúvida, diz respeito aos condutores mas está sempre no passeio onde rouba bastante espaço. Na verdade alguns projetistas e empreiteiros têm cuidado e colocam o parquímetro numa posição que permite um peão passar, por vezes até uma pessoa com mobilidade condicionada, mas medem o espaço quando ninguém está a utilizar a máquina! Com mais imaginação, e mais um esforço, o parquímetro poderia ficar na estrada, num prolongamento do passeio que permitisse comprar o bilhete sem incomodar os peões. Mais ainda, esta solução permitiria situar o parquímetro de tal maneira que evitasse o estacionamento numa curva ou junto a uma passadeira.

Naturalmente não vamos pedir a retirada de todos os objetos dos passeios. Ninguém que defende os interesses das pessoas com deficiência está a propor a eliminação de árvores, esplanadas e papeleiras em todas as ruas: o que pretendemos é melhor ordenamento. É a posição adotada na legislação nacional. A lei sobre a acessibilidade da via pública, o decreto-lei n.º 163/2006, reconhece que sempre haverá objetos nos passeios e exige uma rede de percursos pedonais acessíveis que proporcionem o acesso seguro e confortável às pessoas com mobilidade condicionada. Ou seja, quando alguém está a considerar colocar um objeto no passeio, tem de se  lembrar que o passeio existe em primeiro lugar para oferecer segurança e conforto aos peões e tem de escolher uma posição para aquele objeto que garanta que as pessoas com mobilidade condicionada podem circular à vontade. Apenas quando existe espaço suficiente para garantir o percurso pedonal acessível pode o passeio servir para abrigar sinais de trânsito, fornecer acesso aos transportes públicos e promover o comércio local.

O ordenamento dos passeios é uma responsabilidade das câmaras e em algumas cidades e vilas não é considerada uma prioridade. Pode tentar ligar para a sua câmara e perguntar qual o vereador ou divisão que está responsável pelos passeios. Em alguns locais receberá uma resposta imediata, em outros, o telefonista ficará perplexo. Esta situação é especialmente lamentável porque os regulamentos que regem a ocupação dos passeios são municipais e o grau de exigência varia. Quando alguns municípios prescrevem requisitos para esplanadas limitam-se a falar do espaço ocupado por mesas e cadeiras, enquanto outros municípios percebem que os chapéus de sol representam o maior perigo e regulam a sua altura e projeção. Também as exigências em respeito à sinalização das obras na via pública variam, com algumas câmaras a exigir barreiras robustas e outras satisfeitas com uma fita de plástico suspensa entre dois ferros.

Não é fácil entender esta falta de interesse na segurança do peão. A resposta simples é que a divisão de tráfego sempre tem mais peso nas decisões municipais do que o departamento (desconhecido) que representa os peões. Mas como chegámos a este ponto? Talvez porque quem manda na câmara conduz e simpatiza mais com o funcionário que pretende alargar a estrada para acabar com os engarrafamentos ou criar lugares de estacionamento, do que simpatiza com o funcionário que quer alargar ou introduzir um passeio numa rua onde nunca houve acidentes. Ou, talvez, porque alguém se convenceu que condutores irritados não votarão no atual executivo – mesmo quando a maioria dos condutores, à procura de um lugar para estacionar, residem noutros municípios. Outra explicação, menos incómoda, é que custa mudar de hábitos e é mais fácil os técnicos e os políticos seguirem o caminho de menor resistência e darem prioridade ao automóvel do que alterar práticas de longa data e contemplar as necessidades dos peões.

Também não é fácil de entender a falta de interesse na segurança do peão quando as decisões são tomadas localmente. Os vereadores e diretores municipais, pelo menos nas cidades mais pequenas e nas vilas, estão em contato com os munícipes. Será que os condutores exprimem-  -se melhor ou mais alto? Reclamam quando têm de estacionar a mais do que cinco metros da porta, enquanto os peões não mandam emails a dizer que foram obrigados a andar na estrada quatro vezes antes de chegar ao centro de saúde. Ou talvez os peões mandem e telefonem, mas as suas reclamações são classificadas como queixas contra um problema antigo e irresolúvel, nomeadamente o estacionamento abusivo. Se for assim, é mais um exemplo de como o eleitor-peão não existe na mente dos autarcas.

Tenho esperança que os peões possam aprender a reclamar mais e melhor. Uma melhoria seria abandonar a expressão estacionamento abusivo. Sem dúvida estacionar no passeio é ilegal e uma viatura parada é um obstáculo. Mas antes e depois de estar estacionada, está em movimento e é ainda mais perigosa. Então podemos dizer que somos contra manobras perigosas ou circulação abusiva e não apenas estacionamento. Este assunto assume ainda mais importância com o aumento de carros elétricos que não fazem barulho quando circulam a baixa velocidade.

Outro exemplo de circulação abusiva são as trotinetes elétricas. São poucos os utilizadores que seguem as recomendações dos fornecedores e andam na estrada ou na ciclovia. Podemos compreender, em parte, porque uma trotinete elétrica oferece zero proteção ao utilizador, assim andar na estrada significa correr grandes riscos. O problema é que a solução default é andar no passeio! E as nove cidades portuguesas que licenciaram o serviço sabia perfeitamente que muitos utilizadores iam optar por andar no passeio. Como se explica que numa cidade como Lisboa, com uma população envelhecida, um número grande de pessoas com mobilidade condicionada e milhares de turistas, uma pessoa no poder achou bem introduzir um obstáculo silencioso que pode andar a 30 quilómetros por hora e pode ser largado em qualquer ponto? E ninguém pode dizer que o problema era difícil de prever. Nas nossas reuniões com operadores de trotinetes e bicicletas elétricas ficou claro que o ponto forte do seu modelo de negócios assenta na liberdade que o veículo oferece ao utilizador: o facto de o cliente poder largar o meio de transporte onde quiser.

É difícil de obter dados firmes sobre o número de trotinetes e bicicletas elétricas em circulação, mas pelo menos 10 mil obstáculos móveis apareceram nos nossos passeios desde 2018. Os argumentos apresentados em defesa das trotinetes são fracos: supostamente tiram muitos carros da estrada, quando de facto a maioria das viagens são de pura diversão; é um meio de transporte sustentável, quando de facto as trotinetes têm uma vida útil de cem dias. Mas se estes argumentos são fictícios, o perigo para os outros utentes do passeio é real.

Com o fim da circulação abusiva e um melhor ordenamento dos equipamentos implantados nos passeios podemos voltar a oferecer segurança e conforto aos peões. Embora em alguns locais os passeios simplesmente sejam estreitos demais e todos os peões são obrigados a andar na estrada. Em todas as cidades e vilas de Portugal podemos encontrar um passeio tão estreito que perguntamos porque fizeram tanto esforço para construi-lo. A resposta pode ser que dá a ilusão que resolve o problema da circulação dos peões. Mas a resposta também pode ser que é apenas a lei de menor esforço a funcionar. Para alguns projetistas é mais fácil construir uma rua com passeios demasiado estreitos do que escolher entre três soluções: alargar os passeios e consequentemente reduzir a faixa de rodagem; eliminar o passeio e criar uma rua partilhada; ou eliminar o trânsito e criar uma zona pedonal. Soluções óbvias para algumas pessoas, mas radicais para outras que não entendem que reduzir a velocidade dos carros e condicionar a sua circulação são metas positivas. São soluções óbvias se colocarmos o peão primeiro.

É fácil colocar os peões primeiro porque somos todos nós. Mesmo o condutor mais convicto tem de andar entre o seu carro e o parquímetro. E deveria ser fácil um projetista colocar os peões primeiro porque são os seus parentes, amigos e vizinhos. Avaliando um local ou sentado em frente do seu computador a desenhar, um projetista apenas tem que se lembrar de um familiar mais velho, uma amiga com crianças pequenas e um vizinho que usa um andarilho, para perceber a importância de criar um corredor pedonal livre de obstáculos, com um piso firme e regular, onde as pessoas podem andar à vontade.

Dado que somos todos peões não deve haver necessidade de defender a ideia de tornar os passeios mais seguros e mais confortáveis porque todos beneficiam. Exceto pessoas que dão mais valor à possibilidade de estacionar onde julgam mais conveniente, do que andar numa rua livre de obstáculos. Confesso, para estas pessoas apenas posso dizer que regras existem precisamente para garantir que o resto da sociedade não sofre do egoísmo de uns poucos. Também há comerciantes que pensam que se pessoas não podem parar à sua porta, não terão clientes. A estes diria que uma rua melhor ordenada, sem carros nos passeios, onde um consumidor pode andar à vontade e parar em frente de uma montra sem se preocupar com a circulação das outras pessoas vai aumentar as suas vendas.  

Por fim, do ponto de vista de uma pessoa com deficiência visual os passeios sempre vão ser espaços onde se tem de prestar atenção. Há sempre pessoas a circular a velocidades diferentes, tais como pessoas a fazer jogging e crianças a aprender andar de bicicleta, e há sempre a possibilidade de surpresas, por exemplo obras ou uma esplanada nova. E mesmo numa cidade inclusiva haverá bancos para sentar, árvores para criar sombra, e esplanadas para usufruir. Ou seja, uma data de objetos serão sempre implantados nos passeios. Daí é essencial eliminar o maior número de obstáculos, alinhar os equipamentos essenciais para criar um percurso pedonal acessível e acabar com a circulação e o estacionamento abusivos. É uma meta atingível que necessita um pouco mais esforço por parte dos projetistas e fiscais municipais, e estes apenas terão de imaginar um parente ou amigo com mobilidade condicionada a andar na rua. Em jeito de conclusão só têm de proteger e valorizar o espaço dedicado aos peões. E quando forem mais velhos podem colher os benefícios.