Em resposta à Lei Orgânica 3/2018, que estabelece a criação de uma matriz de voto em braille, a ACAPO foi envolvida, a convite da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, no desenho de uma solução a apresentar já no dia 26 de maio nas eleições para o Parlamento Europeu. Peter Colwell foi um dos técnicos que interveio no processo que visa passar da lei à prática.

Para algumas pessoas a deficiência pode ser descrita como uma série de oportunidades perdidas. Por exemplo, uma pessoa com deficiência visual não repara que a montra de uma loja mudou e que “hoje” há promoções interessantes, não pode ver o vídeo dos primeiros passos da neta e ao longo da sua vida profissional nunca foi considerada para uma promoção devido à sua incapacidade. A experiência mostra que a introdução de medidas para beneficiar pessoas com deficiência também pode constituir uma perda de oportunidades. Se o processo de desenvolvimento das medidas não for bem dirigido, as boas intenções podem resultar numa solução inadequada e frustração entre os supostos beneficiários. 

A introdução de uma matriz em braille em algumas eleições corre o risco de ser um exemplo de oportunidades perdidas. É sem dúvida uma boa ideia: vai permitir a algumas pessoas com deficiência visual votarem sozinhas e assim, participarem plenamente na sociedade. Mas o processo começou com a solução – dois exemplares de uma matriz em braille disponíveis em cada assembleia de voto nas eleições legislativas, europeias e presidenciais – em vez de começar com uma análise do problema com a participação de todas as partes interessadas. De imediato a legislação deixou de fora as eleições autárquicas e a elaboração de uma matriz com letras ampliadas. Por outro lado, a nova lei não indica a entidade que vai fabricar a matriz. A Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) assumiu a responsabilidade do assunto e decidiu que a matriz seria produzida pela Imprensa Nacional Casa de Moeda (INCM), a mesma entidade que imprime os boletins de voto para algumas eleições. Com a exceção de não criar uma matriz com letras ampliadas, estas decisões podem parecer razoáveis, quando de facto revelam que o assunto não foi devidamente discutido.

Em 2018, a legislação eleitoral sofreu alterações e passou a dizer “São elaboradas matrizes em braille dos boletins de voto, em tudo idênticas a estes”. Com esta frase simples a matriz braille chegou a Portugal. Infelizmente a frase revela uma falta de rigor porque não é possível fazer matrizes em braille idênticas aos boletins de voto porque estes contêm os símbolos dos partidos ou, no caso das eleições presidenciais, fotografias dos candidatos. No entanto, a intenção da frase é clara: o eleitor leitor de braille deve ter a oportunidade de ler os nomes dos candidatos e as siglas dos partidos. Basta lembrar-se do nome ou da sigla do candidato da sua preferência para votar sozinho. Assim, o ato de votar é quase igual para leitores do braille e eleitores sem deficiência visual, embora estes possam olhar para os símbolos dos partidos e para as caras dos candidatos a Presidente da República.

A falta de rigor na redação da lei pode parecer um problema fácil de resolver: basta produzir uma matriz idêntica em tudo menos as imagens. Mas a impossibilidade de cumprir a lei, permite ao Estado aplicar os seus próprios critérios. Não há dúvida que o SGMAI levou o assunto a sério mas a pouco e pouco a sua posição passou de “temos de produzir uma matriz que contenha as informações escritas no boletim”, para “temos de produzir a matriz possível com a tecnologia disponível na INCM”. E como vamos ver mais à frente a proposta final é uma matriz nada idêntica ao boletim de voto que obriga o eleitor leitor de braille a fazer tarefas não exigidas aos cidadãos sem deficiência visual.

Nunca foi dada uma explicação formal para a exclusão das eleições regionais e autarcas desta medida. Possivelmente a razão foi que são muitas matrizes! Nas eleições presidenciais e europeias há um boletim de voto para o país inteiro e basta uma matriz. Nas eleições para a Assembleia de República há 22 círculos eleitorais, mas os emigrantes não têm direito à matriz e são precisas 20 matrizes semelhantes mas diferentes. Enquanto nas eleições locais há mais de 300 concelhos e de 3 mil freguesias e o eleitor recebe 3 boletins de voto de cores diferentes: seria um pesadelo logístico! Exceto Portugal estar a lidar bem com este “pesadelo” há anos e os jornais não estão cheios de histórias de boletins trocados. A produção e distribuição dos boletins de voto e dos cadernos eleitorais é um procedimento maduro e eficaz que muito provavelmente poderia lidar com mais um documento. E é um procedimento descentralizado – a INCM não imprime os boletins, são impressos localmente. Então possivelmente esta é a razão para as eleições autárquicas terem ficado de fora. O legislador não queria obrigar mais do que 300 tipografias a comprar os meios para imprimir Braille. Mas alguém calculou o custo? E este alguém percebeu que uma tipografia não precisa de uma impressora Braille para produzir uma matriz em Braille?

Aqui temos um exemplo de oportunidades perdidas. Provavelmente muitas das tipografias escolhidas pelas câmaras municipais não teriam os recursos para produzir a matriz e então seriam obrigadas a adquirir tanto o equipamento como as competências de pessoas que conhecem o sistema Braille. E os efeitos secundários poderiam ser muitos. A obrigação legal de produzir a matriz poderia ser um estímulo às câmaras para produzir mais documentos públicos em braille. E a aquisição de meios de produzir braille poderia motivar as tipografias a promover a inclusão de braille em documentos e embalagens como forma de rentabilizar o investimento. Por outro lado, a procura de pessoas com conhecimentos de braille poderia ir além das tipografias. Atualmente os partidos têm de confirmar que o boletim de voto está correto antes do Estado avançar com a sua impressão – tinha sido possível exigir a confirmação da matriz também pelos partidos. Quando estes começam a procurar eleitores de braille dentro das suas fileiras poderiam descobrir que têm poucos militantes com deficiência e reconhecer que têm de se esforçar para serem mais inclusivos. Poderiam ainda refletir sobre os formatos que usam para comunicar com os eleitores.     

Alguns leitores podem considerar estas oportunidades utópicas ou dispendiosas, e a solução legislada é manifestamente prática e económica. Mas há sempre um custo e com a atual legislação este custo é suportado pelos direitos das pessoas com deficiência visual. Qual a justificação moral para defender o direito de votar de uma maneira autónoma para o Presidente da República mas não para o Presidente da Câmara? Ora, se a autonomia no ato de votar tivesse sido discutida por todas as partes interessadas antes de legislar a solução, com certeza o respeito pelo princípio do sigilo do voto seria aplicado em todas as eleições. E nestas discussões não teria fácil defender a posição de incluir as eleições autárquicas na nova medida por ser caro demais, em particular depois do Estado anunciar que vai gastar milhões em 2019 para permitir mais imigrantes votar. 

Portugal não é o primeiro país a introduzir uma matriz em braille. De acordo com um relatório da União Europeia de Cegos, 13 países em Europa já disponibilizam uma matriz. Os seus conteúdos e a maneira como são distribuídos variam muito. Alguns países obrigam as pessoas que pretendem votar usando a matriz a indicar a sua intenção com bastante antecedência para permitir o fabrico do número certo de matrizes. É uma solução que pode reduzir os custos comparado com o novo modelo português mas mostra pouco respeito pela democracia e diversidade, porque significa que um eleitor com deficiência visual tem de indicar a sua intenção de votar umas semanas antes das eleições. Pode parecer um pequeno preço a pagar, mas se um dia as autoridades competentes se lembram que as cabines de voto devem ser mais largas para as pessoas em cadeiras de rodas, será que vão pedir aos eleitores em cadeiras de rodas para indicarem com antecedência se necessitam uma cabine mais larga? Por outro lado, quem garante que as pessoas que podem beneficiar de uma matriz em braille saberiam que tinham de solicitar a sua disponibilização?                     

Regra geral, as matrizes em Braille na Europa não contêm a mesma informação dos boletins de voto. Por vezes a razão é simples: os seus boletins são muito mais complexos do que os nossos e podem ter várias colunas e listas de nomes onde o eleitor indica mais do que uma preferência. Assim, a matriz é obrigada a ter o mesmo tamanho do que o boletim. Enquanto em Portugal o boletim é simples, com os nomes alinhados à esquerda e os quadrados alinhados à direita. Se o braille e texto a negro ocupam o mesmo espaço, então será fácil alinhar os buracos na matriz com os quadrados no boletim. É comum dizer que o braille ocupa mais espaço do que texto a negro, mas não estamos a falar de um livro, estamos a falar de uma folha de papel com fotos e símbolos e para serem legíveis têm de ser maiores do que uma célula braille. Curiosamente as leis eleitorais não definem o tamanho do boletim, nem o tamanho de letra. Na prática o tamanho é definido pela INCM que usa determinados tamanhos de papel e ajusta o tamanho das letras e das imagens de acordo com o número de candidatos. Maior o número de candidatos, mais pequena a letra. Internamente a INCM definiu um limite inferior – o espaçamento entre candidatos nunca pode ser menor do que 15mm. Assim, até determinado número de candidatos usa-se o tamanho mais pequeno de papel com letras cada vez mais pequena. Uma vez ultrapassado aquele número passa-se para papel maior e letras maiores.

O SGMAI estava preocupado que uma matriz em braille não teria apenas o custo direto da sua produção, mas também custos indiretos significativos. Ter espaço suficiente para escrever braille na matriz poderia implicar usar um boletim maior e assim aumentar os custos da produção e do envio de cerca de 10 milhões de boletins. Foi uma boa notícia porque assim o tamanho de boletim continua a ser determinado pelo número de candidatos e não pela presença de braille. Daí ficarmos com uma dúvida. Será que uma matriz do mesmo tamanho do boletim tem espaço para escrever os nomes dos candidatos em braille sem eles ocuparem mais do que uma linha? A resposta é simples: não tem, porque não tem largura suficiente. E a solução é simples também. A matriz tem de ter a mesma altura do que o boletim (para alinhar com os buracos e os quadrados), mas não tem de ter a mesma largura. Ou seja, a matriz pode ser maior do que o boletim e a sua largura será determinada pelo candidato ou partido com o nome mais comprido.  E onde há espaço para imprimir braille há espaço para imprimir letras ampliadas!

E assim temos uma solução que funciona – permite ao eleitor leitor de braille acesso às mesmas informações escritas do que o cidadão sem deficiência visual – o que não obriga a alterar o tamanho do boletim, e consequentemente não aumenta os custos da produção e envio dos boletins. Exceto o SGMAI insistir em usar a tecnologia disponível na INCM que por sua vez pretende usar uma folha de papel que pode ser dobrada para criar a matriz. E o tamanho deste papel é limitado e assim o espaço disponível para imprimir o braille é menos do que uma folha A4. Nem todos os nomes dos partidos cabem. Infelizmente, considerar produzir a matriz através de outras entidades foi excluído e a oportunidade de criar uma matriz funcional está dependente da opinião dos partidos com nomes compridos. Aceitarão usar abreviaturas para palavras como partido e trabalhador?       

Como o leitor já adivinhou, o SGMAI pediu a opinião da ACAPO sobre o assunto. Fizemos pesquisa, apresentamos as nossas conclusões e defendemos a nossa posição. Contudo, não foi criado nenhum grupo de trabalho com membros de várias entidades que poderiam definir as necessidades dos vários intervenientes, por exemplo, representantes dos presidentes das assembleias de voto e dos partidos. Um grupo desta natureza poderia definir uma solução e depois procurar a tecnologia que pode responder ao desafio e a seguir realizar testes com pessoas com deficiência visual. Em vez disso, o SGMAI tratou com as algumas entidades individualmente e apresentou-nos os resultados. Por causa desta abordagem as pessoas com deficiência perderam uma oportunidade. Como já foi dito era necessário falar com os partidos com os nomes mais extensos sobre a possibilidade de abreviar alguns elementos do nome e deixamos o SGMAI tratar do assunto. Consequentemente uns partidos sem assento parlamentar falaram com o Estado e a resposta foi “não”. Talvez se tivessem falado com os representantes dos eleitores com deficiência visual, eventualmente, a resposta poderia ter sido outra.

Dado que a tecnologia disponível na INCM é limitada, a recusa do SGMAI considerar outros fabricantes e a recusa de alguns partidos a aceitar um nome abreviado, significa que não temos muitas hipóteses. Uma solução parcial seria escrever apenas as siglas dos partidos na matriz, mas não podemos esquecer que os candidatos à presidência não usam siglas. Esta hipótese foi rejeitada pelo SGMAI e assim resta a solução final: escrever apenas candidatura 1, candidatura 2, etc., na matriz em braille e letras ampliadas, e fornecer uma folha com uma lista dos candidatos. Ou seja, uma solução em nada idêntica ao boletim de voto, que obriga os leitores de braille a ler dois documentos em vez de um, e fornece pouca informação ao leitor de letras ampliadas. É verdade que vai mais longe do que a lei porque prevê letras ampliadas na matriz, porém, é uma solução que não foi sujeita a testes, uma etapa fundamental do desenho inclusivo. 

Infelizmente esta solução pode resultar numa perda do voto se o eleitor não for atento. Uma pessoa com deficiência visual que pretenda usar a matriz, vai receber a mesma com o boletim já no seu interior e a folha com a legenda. Alguém pode dizer ao presidente da mesa “Não preciso da legenda, já sei que partido x é número seis!”. Desta forma, indicaria a sua intenção de voto dentro da assembleia de voto, violaria a lei e, em princípio, não chegaria a votar. Por exemplo numas eleições legislativas quando um amigo diz para outro “Partido x é o número seis” - têm de confirmar que estão no mesmo círculo eleitoral, se não a enumeração será diferente e o voto irá para o candidato errado. Talvez a maior oportunidade perdida neste processo tenha sido a oportunidade de cumprir uma lei sobre acessibilidade na íntegra pela primeira vez. Todos sabemos que outras leis que tratam da acessibilidade do espaço público, da educação e das compras nas lojas grandes, não são cumpridas à letra. No caso das leis eleitorais a exigência é só uma – matrizes em braille dos boletins de voto, em tudo idênticas a estes – e o Estado poderá mesmo falhar outra vez, devido à abordagem que adotou.