A 1 de fevereiro de 2017 entrou em vigor mais um Plano Plurianual que define as obrigações relativas à acessibilidade dos serviços de programas televisivos e dos serviços audiovisuais a pedido por pessoas com necessidades especiais (doravante designado simplesmente por Plano Plurianual). Este plano surge sete anos depois da primeira tentativa de regulação da matéria, e depois de anos de atribuladas batalhas judiciais nos tribunais administrativos entre a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (doravante ERC) e, sobretudo, os operadores privados de televisão.
Ilustração de televisão com barras de cor no ecrã

O presente artigo pretende focar-se na divulgação das principais obrigações que recaem sobre os operadores de televisão no que toca ao cumprimento de requisitos de acessibilidade que permitam às pessoas cegas e com baixa visão aceder aos conteúdos difundidos pelos diversos canais televisivos. Dito de outra forma, este artigo pretende evidenciar o direito que as pessoas cegas e com baixa visão têm a algo tão básico como ver televisão, em vez de simplesmente ouvir os conteúdos áudio divulgados por essas mesmas televisões nas suas emissões normais. Com esse fim em vista, traçaremos uma brevíssima evolução histórica dos diversos planos entretanto aprovados, com vista a melhor entender as obrigações atualmente previstas, e faremos ainda um enquadramento genérico do quadro normativo legal aplicável. Porque conhecer e exercer os direitos é missão básica de cidadania de cada um de nós, com ou sem deficiência, e porque o exercício dos direitos é condição essencial de participação plena numa sociedade que queremos inclusiva, esperamos ainda que, mais do que um elenco de direitos, as informações que aqui vamos deixar sirvam sobretudo para que cada um pense, por si próprio, nas melhores formas de fazer atuar os seus direitos, individual ou coletivamente.

As primeiras preocupações com a acessibilidade dos conteúdos televisivos a pessoas com necessidades especiais focaram-se sobretudo nas dificuldades sentidas pelas pessoas com deficiência auditiva, e em especial pelas pessoas surdas, que como é sabido não só têm dificuldades acrescidas no acesso a um dos suportes da televisão (no caso, o suporte sonoro), como também usam uma língua própria, constitucionalmente reconhecida: a língua gestual portuguesa. Esse primeiro acordo entre operadores de televisão data do ano de 2005. Por essa altura, em estreita colaboração com a ACAPO, já a RTP vinha efetuando experiências de audiodescrição de um ou outro filme portugueses, transmitindo o conteúdo da audiodescrição através da rede de emissores de onda média da rádio Antena 1, estação ela também pública.

Desde a revisão operada em 2011 da Lei da Televisão (Lei n.º 27/2007, de 30 de julho), passou a estar legislativamente consagrada a existência de um plano plurianual que estabelecesse obrigações para os canais de televisão em matéria de acessibilidade dos seus conteúdos a pessoas com deficiência. Esta alteração legislativa surge ao mesmo tempo que nos tribunais se travavam acesas batalhas, sobretudo entre a TVI e a ERC, que levaram de resto à invalidação da primeira tentativa de estabelecer um Plano Plurianual sobre estas matérias (a decisão final do processo mais importante nesta matéria pode ser lida, pelos mais curiosos, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de setembro de 2012, relatado pelo Juiz Conselheiro António Madureira, tirado no Proc. N.º 0892/11, disponível em www.dgsi.pt). Já esse primeiro esboço de plano plurianual apontava para a existência, mesmo nos operadores privados, de 12 horas por ano de conteúdos de ficção ou documentários com audiodescrição, exigência que depois acabou por constar dos planos plurianuais que se seguiram a esta alteração da lei, e que passaram a ser de cumprimento obrigatório. É que prescreve o artigo 76.º da Lei da Televisão que o incumprimento das regras constantes desse plano plurianual constitui contraordenação, punível com coima de 20 a 100 mil euros. Até hoje não conhecemos um único caso de um operador de televisão, ou responsável por plataformas de difusão de canais de televisão, que tenha sido condenado por não ter cumprido as referidas regras de acessibilidade aos conteúdos das suas emissões, muito menos no caso específico da audiodescrição.

O Plano Plurianual que agora entrou em vigor foi aprovado pela ERC a coberto da sua Deliberação ERC/2016/260, e pode ser consultado na íntegra na Internet no sítio web desta entidade, em www.erc.pt, mais especificamente através desta ligação. Como os seus antecessores, este plano prevê um conjunto de obrigações em matéria de acessibilidade para pessoas com necessidades especiais, relativamente  às emissões dos canais televisivos, a emitir em sinal aberto ou distribuídos mediante assinatura paga (estes últimos designados como serviços audiovisuais a pedido ou mediante assinatura). Desta vez, o regulador aponta para dois períodos temporais, totalizando um intervalo entre 1 de fevereiro de 2017 e 31 de janeiro de 2020. Antes de mais, quer isto dizer que as obrigações só voltarão, em princípio, a ser revistas no ano de 2019, altura em que se estudará o sucessor deste plano. No entanto, já para o período que agora começa temos obrigações importantes a reter.

No que toca ao serviço público de televisão, presentemente concessionado à RTP, o plano estabelece como obrigações mais relevantes para as pessoas cegas e com baixa visão a existência de pelo menos 70 horas por ano de programas de ficção ou documentários com audiodescrição, admitindo-se que até 31 de janeiro de 2019 este número seja reduzido para 64 horas. O segundo canal do serviço público de televisão (a popularmente designada RTP 2) também deverá contemplar pelo menos 20 horas por ano com conteúdos de ficção e/ou documentários com audiodescrição, admitindo-se que até 31 de janeiro de 2019 este número de horas se reduza para 18. Já no que toca aos operadores privados, os canais generalistas de acesso livre deverão também assegurar, desde já, até 12 horas por ano de programas de ficção ou documentários com audiodescrição, sendo que a partir de 1 de fevereiro de 2019 e até ao final do período de vigência do plano esta obrigação abrange também os canais generalistas apenas acessíveis mediante assinatura (canais pagos, de uma forma geral). É ainda importante, nesse breve resumo das regras agora implementadas, frisar que para esta contagem só entram os programas exibidos entre as 8 horas e as 2 horas da madrugada, não se contabilizando para efeito do número de horas as repetições de programas já anteriormente exibidos. É ainda de notar que a indicação de que um programa dispõe de recursos de audiodescrição deve constar do guia de programas de cada plataforma utilizada para a sua difusão (p. ex. televisão digital terrestre ou plataformas de difusão de canais de televisão por cabo ou Internet, como as mais comuns disponibilizadas pelas operadoras de telecomunicações no âmbito de pacotes com televisão). Nos sítios web dos operadores de televisão deve ainda estar, de forma acessível às pessoas com deficiência visual, o conteúdo das comunicações ao país feitas pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia da República ou pelo Primeiro-Ministro, ou ainda as que sejam emitidas para difusão pelos serviços competentes de proteção civil, no âmbito da sua missão de prevenção e reparação das situações de emergência.

O Plano Plurianual inclui ainda um número de recomendações que, não sendo regras, se adotadas podem contribuir para uma televisão mais acessível a todos. Para as pessoas cegas e com baixa visão, destaca-se desde logo a recomendação de um trabalho de cooperação entre os diversos canais de televisão para a produção de conteúdos com audiodescrição, mas também o apelo da ERC a que a produção de conteúdos com audiodescrição vá além dos limites mínimos estabelecidos pelo Plano. Acessoriamente, a ERC recomenda ainda a locução em português de peças em que os intervenientes se expressem em língua estrangeira, no âmbito dos serviços noticiosos.

Estas obrigações legais ganham força reforçada se pensarmos que já decorrem de normas programáticas da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, designadamente no que toca aos seus artigos 9.º e 21.º, sendo relevante referir que a referida Convenção estipula, especificamente no seu artigo 2.º, que as disposições nela contidas relativamente a comunicação abrangem todo o tipo de formatos. De igual modo, a Estratégia Europeia para a Deficiência 2010-2020 tem como um dos seus pilares fundamentais a promoção da acessibilidade, nesta se incluindo a disponibilização de conteúdos acessíveis nos meios de comunicação social, a qual se deve orientar pela disponibilização de meios que permitam a qualquer pessoa, com ou sem deficiência, um acesso universal ao respetivo conteúdo – o que inclui, naturalmente, a audiodescrição, bem como o acesso, seja em que suporte for, às legendas ou outras menções gráficas exibidas através da televisão. Está de resto em preparação uma diretiva europeia, a ser depois transposta para legislação nacional, que visa uniformizar os requisitos de acessibilidades de produtos e serviços, a qual, no projeto atual, pretende uniformizar as regras europeias quanto à disponibilização de serviços de audiodescrição nas emissões dos meios de comunicação social.

O que vimos de dizer é particularmente importante pela contextualização que nos permite fazer do valor reforçado, atribuído pelos Estados, à necessidade de existirem conteúdos com audiodescrição ou, de uma forma mais vasta, acessibilidade universal aos conteúdos televisionados. Com efeito, o processo judicial movido contra a ERC pela TVI, a que atrás nos referimos, foi muito baseado no entendimento, que o Supremo Tribunal Administrativo confirmou, de que estas obrigações implicavam, se aplicadas de imediato, um enorme esforço financeiro. Esse argumento não tem merecido grande acolhimento, designadamente no quadro do grupo de peritos estabelecido no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o qual, numa decisão recente, considerou que não era desproporcionado obrigar uma cidade austríaca a dotar as novas paragens de uma linha de elétricos de um mecanismo de acessibilidade à informação difundida acessível às pessoas com deficiência visual, já que o custo despendido na ampliação da referida linha de elétricos, era claramente superior ao custo de adaptação dessas novas paragens. Ora no caso concreto, o custo de incluir 12 horas por ano de conteúdos audiodescritos não é, claramente, nem por sombras comparável ao custo de emitir a programação de ficção ou documentários que os canais generalistas contemplam nas suas grelhas para o comum dos cidadãos.

Se a isto acrescentarmos que, ao contrário do que alegava então a TVI, hoje em dia já temos uma plataforma de distribuição de televisão digital terrestre, plenamente operacional, e que inclui recursos de acessibilidade que permitem a difusão de conteúdos com audiodescrição recursos que, de resto, já são aproveitados pela RTP -, e se acrescentarmos ainda que, segundo estimativas dos próprios operadores de distribuição de canais televisivos por cabo e/ou fibra ótica, o custo de acrescentar funcionalidades de acessibilidade ronda os 30 mil euros por ano por canal, facilmente concluímos que, face aos custos de disponibilização tanto das emissões dos canais televisivos, como dos serviços de distribuição de sinal televisivo por cabo e/ou fibra ótica, o acrescento de conteúdos e funcionalidades que permitam às pessoas com deficiência visual o pleno acesso à televisão não se revela, claramente, desproporcional, em face das finalidades de serviço à comunidade que os canais televisivos representam. Só assim se permitirá uma plena acessibilidade aos conteúdos televisivos, e com eles à plena participação na sociedade inclusiva, permitindo às pessoas em causa emitir, livre e fundamentadamente, opinião sobre os conteúdos que estas divulgam a toda a sociedade.

Como também atrás deixámos dito, os operadores dos canais televisivos que não cumpram as regras estabelecidas cometem infrações que são puníveis com coima. Cabe também às próprias pessoas com deficiência, bem como às organizações não-governamentais que as representam, um papel vigilante, exigindo o cumprimento dos normativos legais, mas também a aplicação das sanções neles previstas. O envolvimento direto das próprias pessoas cegas e/ou com baixa visão, reclamando junto dos canais televisivos que não cumprem as metas e denunciando os incumprimentos junto da ERC, será também um veículo potenciador da sensibilização para o direito humano que se constitui na liberdade de acesso aos conteúdos difundidos pelos diversos canais televisivos. Com um novo Plano Plurianual, é chegada a altura de fazer valer os seus direitos, tanto no quadro do referido plano, como da lei portuguesa que o legitima, e das convenções e documentos internacionais a que Portugal se vinculou, e que serão, sem dúvida, parâmetros a ter em conta pelo julgador caso algum destes incumprimentos venha a ser objeto de apreciação nos tribunais.