De entre os vários serviços que a Delegação do Algarve da ACAPO dispõe para atender a população com deficiência visual da região, encontra-se o serviço de psicologia e o serviço de reabilitação, do qual o apoio de orientação e mobilidade (OM) faz parte.

Este artigo, que tem como autoras a psicóloga e a técnica de orientação e mobilidade da ACAPO Algarve, visa abordar o processo de adaptação/rejeição da bengala branca e é escrito em dupla, precisamente porque a adaptação à bengala não requer apenas competências ao nível da aprendizagem de conceitos relacionados com a mobilidade e orientação mas também de capacidades emocionais para lidar com a nova condição. De facto, a nossa experiência profissional tem-nos mostrado que, muitas vezes, os dois apoios se completam para alcançar o objetivo final, que é o de dotar a pessoa com deficiência visual (DV) das capacidades necessárias para ter independência (aqui entendida como a capacidade para realizar as suas ocupações do dia-a-dia sem necessitar de apoio de terceiros) e autonomia (aqui entendida como a capacidade para tomar decisões) ao nível da mobilidade.

 

O processo de reabilitação na deficiência visual

Numa pessoa que acabou de cegar ou que perdeu grande parte da sua visão, a preocupação da família e também da equipa técnica que faz a avaliação inicial é partir para o processo de reabilitação. Acontece que o desenrolar desse processo varia muito de pessoa para pessoa. Algumas estão muito decididas e querem todos os apoios, de modo a serem autónomas e independentes o mais rápido possível. Outras perderam a esperança e vontade de viver, perderam a força, motivação, objetividade e foco. É no segundo caso, que a psicologia e o serviço de reabilitação se encontram.

Este encontro pode dar-se de múltiplas maneiras. Os dois apoios podem ter início ao mesmo tempo ou primeiro um e depois outro, dependendo daquele que a pessoa aceita melhor. Há quem não aceite o apoio de psicologia porque “não é maluco” (desconhecimento e crenças associadas à psicologia) e há quem não aceite o apoio de reabilitação porque ou ainda não aceitou a sua perda de visão ou porque não acha que seja necessária para o seu dia-a-dia.

 

O luto – quando o apoio da psicologia é necessário

Quando uma pessoa perde a visão, ou grande parte dela, entra naquilo que em psicologia se define como um “processo de luto”. Toda a perda, seja de que género for, implica o seu luto, a sua gestão, o saber e aprender a lidar com “a ausência de”. E o apoio psicológico é, de facto, muito importante nesta fase, pese embora muitas vezes a falta de reconhecimento da necessidade por parte da pessoa em luto. Neste momento, o foco no problema é maior do que o foco na sua resolução e a família tem um papel fundamental e essencial. A família é quem tem capacidade de persuadir a pessoa a aceitar este apoio, o que pode levar algum tempo mas, num número razoável de casos, acaba por acontecer.

  Do mesmo modo que a pessoa não está recetiva ao apoio de psicologia, não está também, de todo, aberta ao uso da bengala branca. Acontece, muitas vezes, o utente e a família acreditarem numa cura, o que também dificulta a aceitação de qualquer apoio ao nível da reabilitação.

  Com o passar das sessões, a postura de eventual desinteresse pelo apoio psicológico vai desaparecendo, dando lugar a um momento de prazer e de ajuda efetiva para aquela pessoa. A criação de vínculo entre profissional/utente e o sentir que é um espaço dele e para ele faz com que assim seja, por norma.

  Quando o utente inicia o apoio psicológico, são traçados objetivos, tendo em consideração as expectativas do mesmo. Não raras vezes, é objetivo do utente o uso da bengala. O utente sabe que precisa mas não tem coragem de a usar. E, então, este aspeto é trabalhado durante as sessões, até ao ponto em que terapeuta e utente decidem que é o momento de “experimentar” tocar numa bengala, manuseá-la, conhecê-la.

 

Primeiros contactos com a bengala branca

O psicólogo convida o técnico de OM a participar numa sessão, que servirá para explicar os objetivos do apoio em OM, mostrar como funciona a bengala, convidar a pessoa a experimentar num local protegido e longe dos olhares do público. E é nesse primeiro contacto que a pessoa se dá conta da utilidade da bengala: não precisa estar com medo de bater nas coisas porque a bengala chega sempre primeiro, não precisa tocar nas paredes e outros objetos porque a bengala toca primeiro. Enfim, dá-se conta que a bengala é uma extensão do próprio braço e permite antecipar os obstáculos em segurança.

Por vezes, nesse primeiro contacto a pessoa já pergunta se pode experimentar utilizar a bengala na rua. E pode ser útil, de facto, proporcionar esse contacto e aproveitar para despertar a atenção da pessoa para tudo o que a envolve (ex. o som dos automóveis a aproximarem-se e a afastarem-se, o cheiro da lavandaria mesmo em frente da passadeira, a diferença entre o piso do passeio e o da estrada, a sensação de vento na cara quando chega a uma esquina, etc.) porque são essas sensações que serão mais tarde usadas como referências para se orientar.

Mas para iniciar esse primeiro contacto com a bengala na rua é necessário reunir algumas condições. A escolha da rua em que se desenrola esse primeiro momento é importante: uma rua com pouco tráfego de automóveis e peões e com condições seguras e confortáveis (com boa acessibilidade) é sempre mais agradável e transmite mais confiança à pessoa, de que irá ser capaz de enfrentar esse desafio. E é na rua que a pessoa inicia a interação com as outras pessoas, pelo que tanto os aspetos positivos como os negativos devem ser analisados previamente. Se é verdade que a pessoa vai poder contar com uma maior atenção por parte dos outros peões (por exemplo, oferecendo ajuda para atravessar a estrada) e dos automobilistas (revelando maior sensibilidade à presença da bengala branca e parando com maior frequência nas passadeiras) também é verdade que nem sempre essa interação vai ser positiva/ útil. Quem no uso de uma bengala branca já não sofreu tentativas de ajuda desnecessária?

Por exemplo, alguém (que provavelmente sempre sonhou ajudar uma pessoa cega a atravessar a rua) interrompe a marcha rápida do utilizador de bengala branca rua acima para lhe perguntar se pretende atravessar a estrada. E quando a resposta é negativa ainda insiste se não será boa ideia ir pelo lado da sombra… Ou alguém que, vendo uma pessoa cega confiante a andar na rua, se lembra de relatar os seus próprios medos de cegar e de como a visão “é a melhor coisa do mundo”?

O uso do humor na demonstração de situações caricatas pode ajudar a pessoa a relevar as situações mais incómodas e, naturalmente, nesse primeiro contacto com o exterior os profissionais envolvidos tentarão impedir qualquer tentativa de interação da pessoa com deficiência visual com os outros peões mas podem não ter sucesso e é melhor que a pessoa esteja preparada.

Deste primeiro contacto com a bengala à decisão da pessoa em iniciar o processo de reabilitação em OM podem passar-se meses ou até nunca chegar a acontecer. Mas na grande maioria das vezes o resultado é positivo e, mais cedo ou mais tarde, as pessoas acabam por entender a necessidade de passarem pelo seu processo de reabilitação funcional e assim restabelecerem a independência perdida ao nível da mobilidade.

Mas esta tem de ser uma decisão pessoal. Por muito que os profissionais, a família, amigos, desejem que a pessoa use a bengala e usufrua do apoio de OM, este só vai surtir efeito se o utente estiver aberto à mudança, a uma nova aprendizagem, a um novo querer. Se a pessoa aceitar o apoio só para agradar aos outros, o apoio muito provavelmente não vai ter sucesso. Toda a mudança tem que partir do próprio, só assim se percebe que quer e está preparado para toda uma série nova de aprendizagens, só capazes de serem assimiladas porque o cérebro está permeável a nova informação. Por muitas insistências exteriores que haja, só há resultado se o próprio aceitar. Esta aceitação, obviamente, pode e deve ser trabalhada pelo serviço de psicologia, bem como pela família e amigos.

Por outro lado, é comum que alguns utilizadores de bengala branca, que todos os dias arriscam (destemidamente) em deslocar-se por zonas desconhecidas ou com poucas condições de acessibilidade, partilharem a sua experiência e incentivarem outras pessoas com DV a deslocar-se também sozinhas na rua e a aprenderem a utilizar uma bengala branca. Esta partilha pode ser muito positiva e motivadora mas pode ser também inibidora, quando se afasta muito das expetativas/ ambições do outro.

 

Quando o apoio de orientação e mobilidade se inicia

Quando se inicia o apoio efetivo de OM as reações/atitudes do aluno perante o apoio também são muito diferentes.

Alguns alunos definem concretamente os objetivos que pretendem atingir (ex.: aprender a usar a bengala nas diferentes situações, aprender o percurso x, y e z), empenham-se a 100% nas aulas, trabalhando os conteúdos aprendidos fora das aulas e realizando os percursos que aprenderam com independência, logo que se sintam confiantes. Não raras vezes, quando atingem os objetivos propostos solicitam mais aulas para aprender novos percursos, que entretanto já se encorajaram a realizar.

Com o passar do tempo, o assunto do uso da bengala vai sendo cada vez menos debatido nas sessões de psicologia, o que é revelador de uma adaptação óptima à bengala. O objecto terapêutico transforma-se noutro ou dá-se por encerrado o apoio, se as duas partes assim o entenderem.

Outros alunos têm mais dificuldade na concretização dos seus próprios objetivos, não praticam fora das aulas o que vão aprendendo e por vezes nem usam a bengala quando o técnico não está presente. São apoios normalmente mais demorados ou a pessoa acaba por desistir rapidamente do apoio ou leva-o até ao fim mas depois, no seu dia-a-dia, raramente sai sozinha. Daí a importância da iniciativa do apoio de OM partir do próprio e não ser imposta/ como cedência a pressões externas porque, como explicamos no início, existe uma diferença grande entre independência (capacidade para fazer sozinho) autonomia (tomada de decisão).

 

O caso da baixa visão

É muito comum, principalmente nas escolas/ outras instituições, encaminharem-nos utentes com baixa visão para “treino de bengala”. Frequentemente não foi feita qualquer avaliação diagnóstica que sugira a necessidade de introdução da bengala branca e na maior parte dos casos acaba mesmo por não ser. No entanto, é importante perceber que “treino de bengala” e “treino de OM” não são sinónimos. De facto, muitas vezes o apoio de OM pode ser útil a uma criança/ adulto com baixa visão, sem que seja essencial ou até indicada a utilização de uma bengala branca:

  • Por exemplo, a pessoa que tem dificuldade em atravessar estradas pode beneficiar de um treino auditivo para reconhecer o som/ distância a que vêm os automóveis e assim poder usar a visão e a audição na tomada de decisão de travessar.
  • Noutro exemplo, uma criança que tem dificuldade em reconhecer as suas salas de aula, pode beneficiar de um treino de exploração/ orientação da sua escola para estar atenta às próprias pistas/ referências visuais que facilitam a identificação dos diferentes locais (ex. balde do lixo junto à sala de informática, escadas junto à biblioteca ou a própria localização da sinalética).

Mas dizer a uma pessoa que está a perder a visão que precisa de usar uma bengala, não pode ser feito de forma displicente porque a confronta com medos e angústias que pode não estar preparada para lidar. E a maior parte das pessoas que a rodeiam não estarão qualificadas para saber definir essa necessidade. Por norma, sempre que a pessoa com baixa visão revela algum tipo de dificuldade nas suas deslocações, pode ser bom ser avaliada por um técnico de OM mas, por um lado, a forma como se apresenta o apoio faz toda a diferença na própria aceitação e por outro, não significa necessariamente que o apoio de OM deva ser o primeiro a ser iniciado.

Numa conversa com um profissional especializado (por ex., um técnico da ACAPO), a pessoa com baixa visão vai ficar a perceber melhor o que é o apoio de OM e que nem sempre inclui o treino de bengala, vai ficar a conhecer soluções que lhe permitam otimizar o uso da visão das suas deslocações (por exemplo, o uso de filtros especiais no exterior é altamente indicado para pessoas que sofrem de deslumbramento e resolve grande parte dos problemas com que a pessoa se pode deparar na via pública) e vai ficar a perceber que outras pessoas com baixa visão usam a bengala branca apenas em situações muito específicas.

Ou seja, mesmo quando, após avaliação, se identificam dificuldades ao nível da mobilidade, que põem em causa a segurança da pessoa com DV, e que a bengala branca é claramente indicada, é sempre mais fácil mostrar a utilidade da bengala branca em situações concretas do que fazer “futurologia” sobre uma eventual perda total da visão num prazo estabelecido.

Algumas pessoas com baixa visão podem beneficiar do uso de uma bengala branca de noite (quando sofrem de cegueira noturna) ou quando está muito sol (quando sofrem de deslumbramento). Por vezes, a utilização de uma bengala branca pode ser apenas útil para identificar a pessoa com deficiência visual perante os outros. Alguns exemplos seriam: identificar-se numa paragem de autocarro (para que o motorista reconheça que aquela pessoa não vai conseguir ler o número da carreira e por isso terá que parar e informar); identificar-se numa passagem de peões (especialmente importante em ruas movimentadas porque os condutores são normalmente mais cumpridores do código da estrada, se o peão tiver uma bengala branca/ cão-guia); ou simplesmente num local com muito movimento de pessoas (as outras pessoas desviar-se-ão com maior frequência se perceberem que aquela pessoa não vê bem/ não vê).

 Quando a pessoa com baixa visão decide que quer utilizar a bengala branca nestas situações pode, de facto, necessitar de um “treino de bengala” (processo de ensino-aprendizagem de uma ou várias técnicas de bengala) ou apenas ter algumas noções de como se utiliza uma bengala. E tem que estar preparada para lidar com os tais comentários/ olhares do público, nem sempre facilitadores do processo.

 

Considerações finais

Consoante as necessidades das pessoas, força de vontade, traços de personalidade, o modo como encaram a vida, o apoio (ou ausência dele) por parte da família, assim se desenrola todo um sistema de apoio por parte dos profissionais que intervém na área da DV. Tal como já explicamos anteriormente, nem sempre termina com sucesso e nem todos os utentes reabilitados se transformam em utilizadores ativos e independentes da bengala branca. Por vezes, questões de saúde interferem na mobilidade (força/ robustez) e torna-se pouco seguro para a pessoa sair sozinha (risco de quedas). Outras vezes o “grito de independência” acontece mais tarde e por necessidade (por ex. quando a pessoa perde o familiar/ amigo que a acompanhava nas deslocações).

Terminamos com 3 exemplos concretos acompanhados por esta equipa.

  • Num caso, um utente que percebe a importância da bengala, mas demorou muito tempo neste processo de aceitação. O apoio psicológico foi essencial para iniciar o apoio de OM e, neste caso, foi também longo, com muitas sessões dedicadas ao uso da bengala e medos e ansiedades a ela associadas. Mas hoje em dia usa e está completamente adaptado à bengala.
  • Noutro caso, uma jovem adulta, perfeitamente consciente da necessidade do uso de bengala num futuro próximo mas rejeitando-a com receio da exposição perante os outros. Ao experimentar (na tal sessão partilhada), ficou tão perplexa com as suas vantagens que decidiu, instantaneamente, requerer o apoio de OM. Nesta situação, houve uma mudança gigante no seu processamento mental, sem grande ajuda a nível da psicologia, a não ser no arranque inicial. No entanto, infelizmente, este processo não foi acompanhado por toda a família que, ainda hoje tem dificuldades em ver a jovem com bengala.

Noutro caso, uma adolescente ao ter que mudar de cidade para prosseguir estudos, tomou a iniciativa de contactar a ACAPO e pedir o serviço de OM, para aprender novos percursos, utilizando a bengala, o que até aqui era rejeitado pela própria e família (por superproteção). Um caso onde a psicologia não foi necessária. O clique foi feito através do seu amadurecimento pessoal, tomada de consciência e tendo em conta as suas necessidades de vida, revelando esta utente, uma excelente capacidade para desenvolver ela própria estratégias de coping (saber lidar e aplicar estratégias para conseguir ultrapassar obstáculos).