Por Carla Fernandes, educadora social e formadora de Orientação e Mobilidade, Vera Morais, psicóloga e formadora na área comportamental, Francisco Figueiredo, docente de educação especial e formador de Tecnologias da Informação e Comunicação e João Fernandes, docente de educação especial e formador de Braille.

Qualquer deficiência provoca naquele que a possui um determinado número de incapacidades que se reflectem na participação da vida da sua comunidade, na execução de tarefas quotidianas, às vezes básicas para quem não tem qualquer deficiência. O facto de duas pessoas terem a mesma percentagem de incapacidade não significa que as suas competências funcionais estejam afectadas da mesma forma. De acordo com o Prof. Jorge Barbosa, o conceito de deficiência refere-se ao resultado da ação conjugada de um conjunto de barreiras sociais e físicas (ambientais) que impedem as pessoas com incapacidades de participarem em situações de igualdade com as pessoas sem incapacidades. 

Por este motivo, foi decidido há alguns anos que as pessoas com deficiência teriam direito a produtos, que, pelas suas características, lhes permitiriam ultrapassar em parte ou na totalidade, as dificuldades nas tarefas necessárias a uma cidadania plena, atenuando assim a discriminação de que estas pessoas são alvo diariamente nas mais diversas situações. Ainda de acordo com o Prof. Jorge Barbosa podemos entender por discriminação com base na deficiência “qualquer distinção, exclusão ou restrição com base na deficiência que tenha em objectivo ou efeito impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade com os outros, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais no campo político, económico, social, cultural, civil ou de qualquer outra natureza. Inclui todas as formas de discriminação, incluindo a negação de adaptações… para garantir que as pessoas com incapacidades gozam ou exercem, em condições de igualdade com as demais, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”.

No que concerne à deficiência da visão, as incapacidades funcionais foram identificadas há já algum tempo. Neste trabalho vamos basear-nos no livro de Thomas Carrol “Blindness” considerado a partir dos anos cinquenta o guia fundamental para a reabilitação dos cegos tardios nos Estados Unidos e em muitos países do mundo, incluindo Portugal. O facto de ter sido escrito no final dos anos cinquenta e traduzido para português no Brasil durante os anos sessenta não impede que as dificuldades elencadas, neste caso apresentadas como perdas, estejam perfeitamente actuais. Como é óbvio, devemos dar atenção às soluções que surgiram com os grandes avanços tecnológicos verificados desde essa época até hoje.

Começamos então por elencar as perdas identificadas por Carroll:

 

- Perdas básicas em relação à segurança psicológica                                                         

- Perda da integridade física;                                     

- Perda da confiança nos sentidos remanescentes;                  

- Perda do contacto real com o meio ambiente;                        

- Perda do campo visual;                                           

- Perda da segurança luminosa;                                    

- Perdas nas habilidades básicas;                                     

- Perda da mobilidade;                                               

- Perda das técnicas da vida diária;                               

- Perdas na comunicação;                                                

- Perda na facilidade da comunicação escrita;                      

- Perda na comunicação falada;                      

- Perda do progresso informativo;                                

- Perdas na apreciação;                                               

- Perda da percepção visual do agradável;                       

- Perda da percepção visual do belo;                             

- Perdas relacionadas com a ocupação e à situação financeira;

- Perda da recreação;                                            

- Perda da carreira, do objetivo vocacional da oportunidade de emprego;

- Perda da segurança financeira;                                  

- Perdas que implicam na personalidade como um todo;                    

- Perda da independência pessoal;                                

- Perda da adequação social;                                       

- Perda da obscuridade; 

- Perda da auto-estima; 

- Perda da organização total da personalidade. 

 

Estas perdas são ultrapassadas em primeiro lugar na reabilitação funcional e posteriormente na reabilitação profissional, devendo a primeira devolver à pessoa com deficiência visual algumas das capacidades que perdeu por causa da cegueira e a segunda que lhe permitirá continuar a trabalhar, ou procurar o seu primeiro emprego. É lógico que estas perdas não são exclusivas dos cegos tardios; se falamos da cegueira tardia é apenas porque em todas estas áreas se verifica uma alteração muito significativa no dia-a-dia da pessoa que perde a visão na idade adulta. Assim, o ultrapassar destas incapacidades também é necessário a quem nasce cego, se quiser estudar, frequentar formação profissional, procurar emprego ou participar de forma inclusiva na vida da sociedade em que está inserido.

          As perdas básicas em relação à segurança psicológica são as primeiras a serem trabalhadas, permitindo à pessoa com deficiência visual superar a situação em que está ou em que ficou por causa da falta de visão. Só depois de concretizado este passo é que podemos avançar para questões relacionadas com a perda de capacidades de realizar tarefas do dia-a-dia. Devemos salientar que só com a devolução da autonomia na execução de tarefas diárias, tarefas que para os outros são rotineiras, é que a pessoa com deficiência visual se encontra disponível para o estudo, para a formação profissional ou para o trabalho. O reforço da auto-estima referida em perdas que implicam na personalidade como um todo só é possível se a pessoa com deficiência visual puder desempenhar autonomamente o maior número de tarefas.

Não é por acaso que muitos técnicos ligados à reabilitação reconhecem que aqueles que frequentaram a escola segregada têm mais competências sociais do que aqueles que frequentam hoje a escola inclusiva. O problema não está no modelo de escola, mas sim nos programas que dantes atribuíam uma grande carga horária às disciplinas específicas, a saber: Braille, Mobilidade e Actividades da Vida Diária. Este domínio das áreas específicas faz com que a Pessoa com deficiência visual tenha confiança em si própria, e possa continuar com a sua vida de forma digna e segura.

  A reabilitação funcional e a reabilitação profissional não podem ser desenvolvidas sem a utilização de produtos de apoio. Hoje em dia, existe tecnologia que veio devolver à pessoa com deficiência visual a possibilidade de executar de forma autónoma tarefas que à partida lhe estariam vedadas em virtude da sua deficiência. A reabilitação funcional, a reabilitação profissional e os produtos de apoio são, portanto, um veículo para a autonomia das pessoas cegas, com baixa visão e surdocegas.

Passemos, então, a fazer a ligação entre as áreas identificadas por Carrol em perdas nas habilidades básicas e alguns produtos de apoio.                                      

 

Orientação e Mobilidade: A mobilidade é, talvez, a área mais importante na vida de uma pessoa com deficiência da visão. A autonomia nas deslocações ao promover a independência, ou seja, o direito que todos temos à reserva da nossa vida privada melhora a auto-estima. Os produtos e ajudas para que a mobilidade deixe de ser um problema para o cego são: bengala branca; bengala de sinalização; e, cão-guia.

 

Exceptuando o cão-guia, os outros dois produtos são essenciais, diríamos mesmo básicos, e uma vez que são de desgaste rápido e que estão constantemente em risco - não são poucos os casos de pessoas cegas que se queixam de que transeuntes tropeçaram na sua bengala e a partiram, ou que um carro numa passadeira ou na saída de um estacionamento as esmagou – cada pessoa deve ter pelo menos duas bengalas, uma em uso diário e outra de reserva em casa. Por isso, em nossa opinião na atribuição deste produto não deve ser considerado se o beneficiário já tem uma bengala e se esta está ou não desgastada. Aliás, a bengala é uma necessidade tão evidente para um cego, que não deveria estar à espera de financiamento durante meses. Uma boa solução seria talvez ela ser prescrita pelo médico de família mediante avaliação técnica do técnico de orientação e mobilidade.

 

Técnicas da vida diária: As técnicas da vida diária englobam a apresentação pessoal, os trabalhos domésticos, os cuidados de saúde, as compras, entre outros. Também aqui existem vários produtos que podem ser considerados essenciais à vida de qualquer pessoa com deficiência da visão:

 

- Balanças de cozinha falantes;

- Facas com réguas para fatiar;

- Medidores de líquidos;

- Cronómetros de cozinha;

- Robots de cozinha acessíveis;

- Leitores de etiquetas;

- Identificadores de cores e detectores de luz;

- Relógios tácteis e falantes;

- Fitas métricas;

- Organizadores de comprimidos;

- Medidores de tensão falantes;

- Medidores de glicose falantes;

- Termómetros falantes;

- Balanças para peso corporal falantes, entre outros.

 

A utilidade destes produtos é óbvia. Em nosso entender, a sua justificação é de tal maneira óbvia que não deveria ser necessário levar as explicações à exaustão. Digamos que qualquer dos produtos desta lista não deveria necessitar de outra justificação que não seja – são imprescindíveis à vida diária de uma pessoa com deficiência da visão para que esta não esteja a ser discriminada em relação aos membros normovisuais da comunidade. A sua atribuição como ajuda técnica justifica-se pela enorme diferença de preço entre estes produtos e os seus equivalentes para quem vê.      

 

Comunicação (comunicação escrita, comunicação falada, progresso informativo): Decidimos apresentar apenas um item dedicado à comunicação pelo facto dos equipamentos de que vamos falar poderem ser utilizados em várias situações relacionadas com a comunicação e com o acesso à informação.

Qualquer tipo de comunicação implica o domínio de um código, neste caso de uma língua, e para afirmarmos que conhecemos e utilizamos uma língua são necessárias quatro competências: ouvir, falar, ler e escrever. Estas estão intrinsecamente ligadas, quer dizer por exemplo, que se não lermos dificilmente escrevemos correctamente. Assim, quando falamos de comunicação, falamos do domínio de um determinado código, que nos permite aceder à informação, algo essencial neste momento. Quem não acede à informação está excluído da sociedade. A prova disto é o facto das grandes organizações, de há alguns anos para cá, investirem cada vez mais em gabinetes de tratamento de informação. No centro dos equipamentos ligados à comunicação está o computador. As suas características devem ser determinadas de acordo com as necessidades de quem o vai utilizar, mas uma coisa é essencial – o computador atribuído deve ser actual e não uma máquina descontinuada que já não suporta as aplicações recentes. Por serem cegas ou terem baixa visão as pessoas não devem ser confrontadas com equipamentos obsoletos de desempenho duvidoso. 

A utilização de aplicações específicas como leitores de ecrã, softwares de ampliação ou de OCR’s permitem à pessoa com deficiência da visão aceder a internet, ao correio electrónico, ao processamento de texto, a folhas de cálculo, a pautas de música, a documentos em tinta, enfim… a muita informação que nos é apresentada de diversas formas e em diversos suportes. No caso das pessoas com baixa visão, pode ainda aconselhar-se o recurso a lupas ópticas ou a ampliadores digitais portáteis e de mesa. Estes dois equipamentos não se substituem, uma vez que são usados em situações diferentes, um fixo e outro portátil. 

No caso das pessoas cegas que conhecem e utilizam o sistema Braille o acesso à informação apresentada no ecrã do computador pode ser lida efectivamente através de uma linha Braille. Não é desejável que se negue a uma pessoa com deficiência visual que lê Braille a possibilidade de “ler” em vez de “ouvir ler”. O direito à utilização do sistema Braille pelas pessoas cegas foi reafirmado na Conferência Ibero-americana do Braille realizada em Buenos Aires em Setembro de 1999 que considerou que  “…el libre ejercicio del sistema braille es un derecho que debe protegerse y volverse accesible a todos”.” 

Para além das linhas Braille, existem impressoras que permitem aceder a conteúdos em Braille. Estas são imprescindíveis a todos aqueles que têm de ler musicografia, grafia matemática ou química, ou produzir material para dar aulas a normovisuais. Existem conteúdos em Braille que só são acessíveis, quer dizer compreensíveis, em papel.  

Seguindo este raciocínio, aproveitamos para referir a máquina de escrever Braille. Esta é quase tão essencial como a bengala. Com ela podem ser marcados produtos que estão presentes na vida diária de todos como alimentos, cd’s, livros, pastas de arquivo, listas de compras para o supermercado, etc. A presença de uma máquina de escrever Braille na casa ou no trabalho pode ser essencial para uma pessoa com deficiência visual.

Existem ainda pessoas cegas que por qualquer razão não conseguem utilizar o computador. Isto impede-as de acederem à informação escrita a tinta, uma vez que o uso de um OCR implica um domínio mínimo da informática. Nestes casos justifica-se perfeitamente a prescrição de um leitor autónomo, que mediante a utilização de alguns botões, muito poucos, consegue o conteúdo de um documento escrito a tinta.

Finalmente, no acesso à informação devemos referir os gravadores digitais. As funcionalidades que estes equipamentos apresentam neste momento tornam-nos quase imprescindíveis a uma pessoa cega ou com baixa visão, permitindo tomar notas em qualquer lado onde se esteja, aceder a listas gravadas, aceder em voz a documentos em formato de texto (docx, rtf, txt, etc).

Além dos equipamentos, a constituição das equipas de prescrição é muito importante. Neste momento estas são compostas por Psicólogos, Técnicos de Orientação e Mobilidade, Professores de Educação Especial, Técnicos Ocupacionais e Oftalmologistas. Quando foram definidas as áreas em que os Centros de Recursos direccionados para a deficiência da visão deviam intervir indicaram-se estes perfis. Acontece, que com o tempo, reparámos que existem outras necessidades, nomeadamente no que diz respeito aos surdocegos. Neste momento justifica-se a integração de um médico Otorrinolaringologista que possa prescrever aparelhos auditivos. As situações em que indivíduos surdocegos surgem na formação profissional, em pedidos de acompanhamento e nas entrevistas para prescrição de produtos de apoio são cada vez mais frequentes. Aliás, deve referir-se que há alguns anos, a ACAPO enquanto centro prescritor fez prescrições de aparelhos auditivos.

Concluímos depois desta breve análise que:

 

- A Reabilitação Funcional, a Reabilitação Profissional e os Produtos de Apoio estão inevitavelmente ligados;

- Os Produtos de Apoio para as pessoas com deficiência são um direito e não uma benesse;

- A posição daqueles que avaliam as necessidades e prescrevem ajudas técnicas deve ser rigorosa mas facilitadora, de forma a não criar barreiras e/ou inibições no candidato;

- Os profissionais que prescrevem Produtos de Apoio devem ter presente que o seu papel é o de defender os interesses das pessoas com deficiência da visão.

 

Nota final: As considerações aqui apresentadas foram baseadas na nossa experiência prática e devem ser encaradas como um contributo no sentido de melhorarmos a nossa actuação em relação a todos os que nos procuram para solicitar Produtos de Apoio. LB

 

Por decisão pessoal, os autores deste artigo não escrevem segundo as regras do novo acordo ortográfico.