Como muitas invenções também a bengala branca demorou algum tempo a tornar-se popular. E como muitos equipamentos do dia-a-dia, a bengala branca já não é como era, nem sequer é usada da mesma maneira. O dia da bengala branca também não é o que era.

A primeira pessoa a propor publicamente pintar a bengala branca para a tornar mais visível aos condutores foi um artista britânico. Foi em 1921, quando as estradas eram partilhadas por cavalos e por automóveis ainda, e estes eram vistos como uma ameaça por muitos peões. Um cidadão de Bristol, James Biggs, que perdeu a visão num acidente, não se sentiu seguro a atravessar a rua e pintou a sua bengala branca para chamar a atenção dos condutores. Mas a ideia não convenceu as outras pessoas com deficiência visual. Até que, em 1931, quando uma francesa, preocupada com o facto de as pessoas cegas terem sempre de pedir ajuda para atravessar as ruas de Paris, reparou que os polícias sinaleiros usavam bastões brancos para regularem o trânsito. Guilly d'Herbemont percebeu então, que as pessoas cegas seriam mais visíveis com uma bengala branca na mão. Em fevereiro de 1931, ela própria lançou uma campanha para fornecer bengalas brancas aos franceses cegos e financiou a entrega das primeiras cinco mil.

Quando esta iniciativa foi relatada na imprensa britânica, o outro lado da Mancha tinha de responder. Os Rotários lançaram uma campanha semelhante no Reino Unido e em maio de 1931, a BBC, nas suas transmissões de rádio, promoveu o uso da bengala branca no Império Britânico, como indicação que o portador tinha uma deficiência visual. A bengala branca já estava lançada na Europa e além.

Entretanto, no outro lado do Atlântico, a revolução também estava em marcha. Desta vez foi um presidente do Clube dos Lions que teve a ideia de tornar a bengala mais visível. Em 1930, George A. Bonham da cidade de Peoria, no Estado de Illinois, observou as dificuldades que um homem cego com uma bengala preta enfrentou a atravessar uma rua movimentada. A sua ideia de uma bengala branca com um risco vermelho foi aprovada pela delegação local dos Lions e pouco depois pelo Lions Club International que começou uma campanha nacional nos EUA em 1931. Além disso, já em dezembro de 1930, a Câmara Municipal de Peoria decretou que um peão com uma bengala branca tinha prioridade nos atravessamentos. Nos próximos anos outras cidades e alguns estados americanos seguiram o exemplo e aprovaram leis a proteger o peão com deficiência visual.  

Os Lions dos EUA estão profundamente ligados ao dia da bengala branca. Em 1951, um clube na Califórnia estava a angariar fundos para uma campanha de profilaxia da cegueira e decidiu fazer um apelo direto ao público. Mandaram fabricar bengalas brancas em miniatura e anunciaram o Dia da Bengala Branca. Conseguiram angariar 500 dólares e no ano seguinte mais 30 clubes dos Lions imitaram a iniciativa. Hoje em dia, os Lions angariam milhões de dólares no dia 15 de outubro para financiar os seus projetos no campo da deficiência visual.

Na década de sessenta, várias associações de pessoas com deficiência visual e centros de reabilitação fizeram lobby no Congresso Americano a pedir o reconhecimento do dia 15 de outubro como o dia da segurança da bengala branca (White Cane Safety Day, em inglês). O pedido foi concedido em 1964. Apesar de incluir a palavra “segurança” no nome, que eventualmente foi uma maneira de reconhecer a lógica atrás da sua invenção, o dia foi encarado como um reconhecimento da independência e autossuficiência das pessoas com deficiência visual pela National Federation of the Blind (Federação Nacional dos Cegos dos EUA). Segundo o Presidente Lyndon B. Johnson, que fez a primeira proclamação presidencial sobre o assunto, a bengala simbolizava a capacidade da pessoa cega circular sozinha e o seu uso promovia cortesia e oportunidades para a mobilidade dos cegos. 

Demorou apenas cinco anos para a International Federation of the Blind declarar o dia 15 de outubro “International White Cane Safety Day”. Segundo a União Mundial dos Cegos (o sucessor da Federação Internacional) o Dia da Bengala Branca é comemorado para reconhecer a passagem das pessoas cegas da dependência para a participação plena na sociedade. Para esta organização a bengala branca é o símbolo da independência e da dignidade e capacidade das pessoas cegas, enquanto o dia internacional é uma oportunidade para pessoas com e sem deficiência visual se juntarem para apoiar a transição das pessoas cegas à integração plena. Ou seja, é um dia em que comemoramos os sucessos, mas também lembramos que em alguns países ainda há um longo caminho a seguir.

Sabemos que nada é eterno e o Dia da Bengala Branca ganhou outro nome, na sua terra de origem, quando, em 2011, o Presidente Barack Obama declarou que o dia 15 de outubro seria o Dia da Igualdade dos Americanos Cegos (Blind Americans Equality Day) e seria uma celebração das conquistas dos americanos com deficiência visual e a reafirmação do compromisso de avançar com a sua integração económica e social plena.

É de salientar que a bengala branca de hoje, e até a de 1964, tem pouco que ver com a bengala branca de 1921. Esta era apenas uma bengala de apoio em madeira que tinha sido pintada de branco. Nos anos 30, quando o seu uso foi promovido, a pessoa cega segurava na bengala na diagonal para informar os outros da sua incapacidade. Com certeza algumas pessoas usavam a bengala para explorar o seu ambiente mas não de uma maneira tão sistemática como hoje. A técnica de dois toques, ou o método de Hoover como é conhecido em inglês, foi desenvolvido nos anos 40 por um técnico de reabilitação, Richard Hoover. O movimento básico de fazer um arco um pouco maior do que a largura do corpo foi inspirado pela técnica empregue para procurar explosivos num campo de minas. O contato sistemático com o chão serve para obter pistas acústicas e táteis do ambiente. Esta técnica necessitava de uma bengala mais comprida e mais leve. A inovação enfrentou alguma resistência mas o hospital de veteranos de Hines, novamente em Illinois, adotou o método e a pouco e pouco tornou-se padrão nos EUA. Foram os britânicos que trouxeram a técnica à Europa mas aqui, em 1964, ainda havia defensores e opositores da bengala mais comprida.

Hoje em dia estamos a ver um novo debate: uma bengala branca tem de ser branca? A resposta simples é que a cor branca é a mais visível e se escurecemos a bengala reduzimos o grau de proteção. Pelo qual o contra-argumento pode ser “mas apenas preciso da brancura quando pretendo atravessar ruas sozinho”. Ou seja, se vou participar num jantar de gala e vou de limousine, porque não posso usar uma bengala com mais estilo e mais cor e que condiz com a minha roupa e reflete a minha personalidade?

Uma bengala é um instrumento: pretende ser funcional. Sendo assim podemos afirmar que o mais simples e o mais económico será melhor. Contudo, apesar do relógio ser também uma peça que pretende ser funcional, sempre serviu para mostrar a riqueza, o bom gosto (ou falta dele) ou a personalidade do dono. E os relógios táteis, disponíveis em vários formatos e preços, não são uma exceção. Daí uma bengala também poder ser, em simultâneo, funcional e interessante esteticamente. 

E há fabricantes a responder (ou a criar) esta necessidade. Existem bengalas de diversas cores, bengalas em que apenas a pega é colorida e bengalas predominantemente brancas com um toque de cor perto da pega, na ponteira e na pega. Se perguntarmos a um técnico de reabilitação se pode usar uma bengala colorida, podemos receber como resposta “Se faz diferença entre usar ou rejeitar a bengala, então sim!” ou “Se faz o utente sentir-se mais confiante, então sim!”.

No entanto, pode haver mais questões a considerar. O público, em particular os condutores, reconhece e respeita a bengala branca? Se sim, a mudança de cor vai ter um impacto negativo e menos condutores vão reparar nos peões com deficiência visual? Uma bengala branca é mais visível do que uma bengala rosa choque? Quem é mais responsável para a segurança do peão – ele próprio ou os condutores? Os condutores não deveriam reparar em todos os peões? Mas sem pesquisa o debate seria mais emocional do que científico e se calhar em Portugal, um país em que talvez metade das bengalas brancas são de cor de alumínio, o debate não será muito vivo. 

Curiosamente, acabou de ser publicado, no Journal of Impairment and Blindness, um estudo sobre o impacto da cor da bengala sobre o comportamento dos condutores. Os autores também comparavam o impacto de manter a bengala visível mas parada enquanto se espera ao lado da passadeira com o impacto de abanar a bengala no ar. Chegaram à conclusão que mais condutores param quando o peão abana a bengala do que quando a bengala está parada. A diferença no comportamento do peão era mais relevante do que a cor, mas usando a mesma técnica uma bengala branca tinha mais impacto do que uma bengala verde ou amarela. Curiosamente, a diferença entre uma bengala branca e uma preta não era estatisticamente significativa. Senhor George A. Bonham teria outra opinião.

 

* “The Effect of the Color of a Long Cane Used by Individuals Who Are Visually Impaired on the Yielding Behavior of Drivers” Bourquin, Emerson, Sauerburger, and Barlow, JVIB September-October 2017.