A Acesso Cultura lançou a 1.ª edição do prémio “Linguagem Simples” com o objetivo de reconhecer o esforço daqueles que se preocupam em comunicar a cultura com clareza. Foi este o pretexto da conversa que tivemos Maria Vlachou, diretora executiva e fundadora da Acesso Cultura.

Maria Vlachou num corredor junto ao cartaz de um espectáculo

Louis Braille: Se existe a necessidade de premiar quem aborda na cultura de forma acessível, isso significa que esta não é uma prática enraizada.

Maria Vlachou: Não, de todo. Estamos muito longe disso. Aliás, basta visitar qualquer museu (a maioria) e sentimos que estamos perante uma barreira linguística porque quem escreve, não escreve para um “não especialista”. Portanto, não tem que ver com o facto de o visitante ter ou não estudos superiores, o facto de se tratar de uma linguagem que não tem que ver com o seu conhecimento, automaticamente torna aquilo numa língua estrangeira. E quando um visitante é confrontado com uma barreira dessas, penso que a situação mais comum é o visitante sentir que fica aquém, que o que sabe não é suficiente e sente-se inadequado. Acho que nenhum museu deveria ficar contente ao fazer as pessoas que o visitam sentir-se dessa forma.

L.B.: E porque é que o fazem dessa forma?

M. V.: É o hábito e porque antigamente não havia nenhuma exigência de democratização do acesso aos museus e, portanto, os museus eram para quem lá trabalhasse, para os seus pares, para outras pessoas com os mesmos estudos e interesses e para mais algumas pessoas que tinham este hábito. Mas acontece ainda hoje acharem normal não perceberem, por isso, não reclamam. Portanto, gostam de ir, veem coisas que lhes parecem bonitas mas depois quando o texto não ajuda a dar um significado as pessoas não reclamam porque acham que é mesmo assim. É um círculo vicioso. Tanto os visitantes não exigem melhor, como quem escreve não o faz a pensar nessas pessoas.

L.B.: Embora a Acesso Cultura trabalhe muito na área da deficiência, quando falamos em linguagem acessível, nós não estamos a falar de um tipo de linguagem para ser entendido por pessoas com deficiência?

M. V.: Não mas também essa é uma parte que deve ser considerada. A nossa preocupação é com o “grosso” dos visitantes dos museus, a grande percentagem, que não tem conhecimentos específicos, nem falam aquela linguagem específica. Isto não tem que ver com uma deficiência, tem que ver com os conhecimentos das pessoas. Depois, claro, tem de haver uma linguagem simplificada mas mesmo assim não iria ao encontro de uma pessoa com deficiência intelectual. Isto significa e há outras técnicas de tornar determinada narrativa mais acessível a pessoas com deficiência intelectual. O Museu de Leiria, por exemplo, já tem materiais que contam a história da exposição, ao qual todos os visitantes têm acesso, e tem uma narrativa não diria alternativa mas outra linguagem que pode ser entendida por pessoas com deficiência intelectual.

L.B.: Isto também tem que ver com o desenho inclusivo. Qual a sua opinião sobre a utilização de uma só linguagem para todos os públicos? Isto é, comunicar da mesma forma com uma pessoa com deficiência intelectual, uma pessoa sem deficiência, uma pessoa com deficiência auditiva, ou seja, todos quase ao mesmo nível.

M. V.: Devo dizer, em primeiro lugar, que o “para todos” não existe. As pessoas são demasiado diversas, e ainda bem, para podermos considerar que determinada solução vai servir toda a gente. É por uma maioria que nos guiamos, porque vai sempre haver pessoas muito altas, muito baixas, e, portanto, aquilo que se procura fazer é implementar soluções que possam servir o maior número de pessoas possível. Acho que temos de estar conscientes disso. No que diz respeito à linguagem, esta não tem que ser “uma”. Claro que há uma narrativa central que deverá servir as diferentes pessoas que visitam determinada exposição ou espaço. Não será esse texto que servirá uma pessoa com deficiência intelectual. Os materiais a preparar terão de ser outros. Não servirá este texto para alguém que é especialista. É legítimo todas as pessoas exigirem o acesso à informação de acordo com aquilo que são os seus interesses e preocupações. Isto significa que temos de hierarquizar esta informação. Ou seja, “um” não serve para todos. “Um” poderá servir a maioria mas não toda a gente. Portanto, não é um desafio simples é um desafio complexo e temos de ter noção qual a diversidade das pessoas com quem estamos a trabalhar.

L.B.: Então ao instituírem este prémio pretendiam apenas abordar a questão do acesso à linguagem e não dos formatos em que a informação chega às pessoas….

M. V.: Estamos a trabalhar concretamente naquilo que todos os museus têm, museus e não só, entidades culturais em geral, independentemente de terem mais ou menos meios, que é legendas na parede – isso todos os museus têm – e websites. E, portanto, os textos que podiam ser candidatos a este prémio são de divulgação do tipo de espectáculo ou exposição, e depois os textos que encontramos no próprio espaço, na parede, numa folha de sala, etc. Há outros meios, meios tecnológicos, por exemplo, audioguias, legendas digitais… Mas nós quisemos, pelo menos nesta fase, concentrar-nos naquilo que é comum a todos e que todos têm como suporte e plataforma para comunicar com o exterior.

L.B.: Mas concorda que a questão do suporte, do formato, é também ele próprio um desafio.

M. V.: O curso da Acesso Cultura, que se chama comunicação acessível, dedica igual importância aos dois lados. Podemos ter o melhor texto do mundo e este não ser legível. Portanto, o nosso curso aborda as duas questões: o design e da linguagem. O prémio apenas contempla questões da linguagem.

L.B.: Tal como sucede com outras produtos da sociedade, também a cultura parece estar construída só para uma elite, para um determinado grupo de pessoas…

M. V.: Acho que a tradição foi essa. Havia uma série de expressões culturais/artísticas que eram só para alguns entendidos ou algumas pessoas que faziam parte de determinado grupo e não havia intenção/preocupação em se abrir a outras pessoas. Fizemos um debate em novembro sobre o que é o elitismo na cultura. Uma elite não é necessariamente uma coisa má. Uma elite pode ser uma elite porque é algo que junta determinadas pessoas à volta de um assunto, de temática ou causa, mas a elite pode demonstrar todo o interesse em se tornar acessível. E portanto, é aí que se posiciona a Acesso Cultura. O direito de acesso à cultura é um direito de todos. O direito de definir o que é cultura também é um direito de todos, tem de haver abertura para considerarmos essas questões e a nossa preocupação é permitir que as pessoas tenham conhecimento e que depois tenham acesso, se tiverem interessadas porque não são obrigadas a estarem interessadas. Podem ver um determinado espectáculo e dizer “isto a mim não me interessa”.

L.B.: E qual a relação das pessoas com deficiência com a cultura?

M. V.: Falando de uma forma geral, não existem práticas culturais. Vou-me centrar na relação das pessoas com deficiência com as instituições culturais formais. Sabemos que a relação é pouca, as pessoas aparecem pouco e as razões são várias. Podem não aparecer porque simplesmente não têm acesso - não vale a pena uma pessoa em cadeira de rodas chegar ao edifício de um teatro ou museu, encontrar uma grande escadaria e depois não poder entrar, portanto, fica fora. Também visitar um museu e ter tudo por detrás do vidro ou não haver nenhum suporte de informação, como audiodescrição ou legendas em Braille… Ir para quê? É uma perda de tempo! A Acesso Cultura procura consciencializar os profissionais da cultura para as necessidades das pessoas e perceber porque é que as pessoas não se relacionam connosco. Em muitos casos, estaremos a começar do zero, de uma pessoa que não tem relacionamento nenhum ou hábito de frequentar esses espaços. Estamos talvez agora a criar as primeiras condições para estas pessoas, se tiverem interesse.

L.B.: Uma linguagem mais acessível pode ser um contributo?

M. V.: Isto, para mim, é um óbvio contributo, quer tenhamos uma deficiência ou não. A linguagem é, para mim, uma das principais barreiras. Mas temos de trabalhar. Não vale a pena lamentarmo-nos porque não temos público. Há museus que fecham portas e ninguém se manifesta! Temos de ter consciência do tipo de relação que temos com a sociedade e a importância que temos na vida das pessoas.

L.B.: Quais as suas expetativas em relação a este prémio?

M. V.: Eu estaria contente mesmo que houvesse apenas uma candidatura. Estaria contente mesmo que não houvesse nenhuma. Isso significa que há trabalho a fazer. Para nós o mais importante é chamar a atenção em relação a uma das principais barreiras.

L.B.: E se as instituições culturais quiserem preencher estas lacunas em termos de acessibilidade, a Acesso Cultura pode ajudá-las?

M. V.: Podemos. Podemos fazer esta consultoria, trabalhar com eles, explicar alguns princípios que são tão óbvios. Nós falamos bastante disso no nosso curso e é engraçado quando olho para as pessoas como elas fazem “sim” com a cabeça quando explicamos algumas normas básicas, no sentido de comunicar de uma forma mais acessível. Mas se é tão óbvio porque não o fazemos? Mas também sabemos o porquê! Temos a tendência de confundir o simples com o simplista. A linguagem simples com uma linguagem infantilizada. Aliás há uma TedTalk muito interessante da Sandra Fisher-Martins, da Português Claro, que é uma das pessoas do júri, onde ela cita o Einstein que dizia: “Se não consegues explicar de uma forma simples é porque tu próprio não percebes nada”. Tentas se calhar decorar o discurso, com muitos adjetivos, termos técnicos, no sentido de impressionar mas na verdade não estás a comunicar nada. Depois há também uma grande preocupação em recebermos os aplausos dos nossos colegas, temos medo de, se comunicarmos de outra forma, parecer que não somos suficientemente eruditos, sofisticados. Há então algumas decisões que têm de ser tomadas por quem escreve, dirige, e têm de ser decisões muito conscientes. A primeira será responder para quem é quem estamos a fazer o que estamos a fazer? E isso depois isso facilita uma série de outras decisões.

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