No âmbito do definido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, os Estados-parte obrigam-se a garantir a todas as pessoas com deficiência o pleno reconhecimento e o exercício dos seus direitos num quadro de igualdade de oportunidades (Art.º 1.º), bem como o direito a viver de forma independente e à total inclusão e participação na comunidade (Art.º 19º).

As práticas sociais em relação às pessoas com deficiência têm evoluído no sentido de promover, gradualmente, uma maior participação destas pessoas na sociedade. Assim, até ao início do século XX, verificava-se o predomínio de um paradigma promotor de exclusão, passando-se, entre as décadas de 20 e 40, para uma atitude de segregação das pessoas com deficiência. Com o abandonar do modelo médico que até então tinha orientado a intervenção no campo da reabilitação, surge uma nova era que privilegia a relação entre a sociedade e as pessoas com deficiência. Assim, num primeiro tempo, entre as décadas de 50 e 80, surge um período que promove a integração, passando-se já nos anos 90 e, até à atualidade, para um tempo onde a inclusão é a preocupação de todos aqueles que trabalham nesta área.

Em Portugal, as condições de vida para as pessoas com deficiência têm assentado na delegação das responsabilidades nas famílias ou na institucionalização, sendo os apoios existentes baseados, fundamentalmente, em prestações pecuniárias mensais, (de acordo com as condições de atribuição estabelecidas por lei) e, em respostas de Ação Social (equipamentos e serviços), destinados a proteger as pessoas que se encontram em situação de carência económica ou de exclusão social. Neste contexto, a implementação de um modelo de apoio à vida independente surge como uma resposta inovadora, que rompe com a dimensão assistencialista que tem caracterizado boa parte das respostas existentes até à data.

Como surgiu a ideia de promover a vida independente? Nos anos 70, um pouco por todo o mundo, criaram-se ou reformularam-se estruturas organizativas, que estabeleceram como propósito central tornar evidentes as várias formas de opressão a que as pessoas com deficiência se sentiam sujeitas.

É neste contexto que, nos Estados Unidos da América, surge um projeto de promoção da vida independente, nascido na cultura universitária, com a criação do primeiro centro para a vida independente a partir de uma residência destinada a estudantes universitários. A ideia deste centro partiu da necessidade de um espaço de suporte, gerido pelas próprias pessoas com deficiência, que lhes conferisse o apoio necessário para a sua integração na sociedade, libertando as suas vidas do controlo dos profissionais e desmedicalizando-as.

Fotografia, a preto de branco, de pessoas em cadeira de rodas numa manifestação. Uma das pessoas transporta a bandeira dos Estados Unidos, onde no lugar das 50 estrelas está o pictograma da deficiência motora.

Estes centros viriam a disseminar-se por todo o país, articulando-se com um amplo movimento social de pessoas com deficiência - donde se destacou a American Coalition of Citizens with Disabilities -, reivindicando o fim das relações de dependência e a chamada de atenção para os obstáculos presentes no meio envolvente.

Criou-se, então, aquilo que ficou designado como o Independent Living Movement (Movimento de Vida Independente), um movimento que se centrou na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, e cuja emergência viria a ter repercussões noutros contextos.

Este movimento carateriza-se por ser um movimento social de pessoas com deficiência, cujos princípios de integração social foram formulados pelas próprias pessoas com deficiências severas, que não aceitavam ficar à margem da sociedade e à mercê das instituições, dos especialistas e dos familiares, que decidiam tudo por eles. Através deste movimento, dá-se ênfase ao termo “independente”, que significava não-dependente da autoridade institucional e familiar.

O Movimento de Vida Independente veio provar que a pessoa com deficiência tem capacidade plena para administrar os seus interesses e obrigações com independência, fazer as suas escolhas e tomar decisões sobre o que é melhor para si, e exigir o direito de o fazer. Passa a ser responsabilidade da própria pessoa com deficiência o controlo sobre a vida quotidiana, incluindo a oportunidade de fazer escolhas e tomar decisões sobre onde morar, com quem viver e como viver. Permite a escolha da contratação de um/a assistente pessoal, em detrimento da institucionalização.

O Assistente Pessoal tem como missão apoiar a pessoa com deficiência ou incapacidade a viver de forma independente, através da realização, sob a sua orientação, de atividades em diferentes contextos, que, em razão das limitações decorrentes da interação com as condições do meio, a pessoa não pode realizar por si própria.

As atividades e tarefas de um assistente pessoal poderão desenvolver-se em vários domínios da vida da pessoa com deficiência, designadamente apoio e assistência, cuidados pessoais (higiene, alimentação, e outros), cuidados de manutenção de saúde, atividades domésticas, deslocações, participação de cidadania, e em atividades culturais, desportivas e de lazer, frequência de ações de formação profissional, entre outras. Neste contexto, o assistente pessoal poderá, caso se torne necessário, surgir como um mediador, nomeadamente no que concerne à comunicação e/ou em atividades sócio laborais, profissionais e ocupacionais.

Em que medida poderão as pessoas com deficiência visual beneficiar do apoio à vida independente e do contributo de um assistente pessoal?

O papel de um assistente pessoal, bem como o tipo de tarefas que este possa desempenhar, pode variar tendo em conta a(s) incapacidade(s) de cada pessoa e o seu nível de autonomia. Assim, pessoas menos autónomas poderão ter necessidade de um acompanhamento maioritariamente relacionado com a mobilidade e as tarefas da vida diária, enquanto pessoas com um maior grau de autonomia necessitarão antes  de maior apoio, por exemplo, em atividades de lazer ou de participação social e cívica. Por outro lado, pessoas menos autónomas poderão necessitar de um apoio mais permanente, ao passo que pessoas com maior grau de autonomia poderão ter a necessidade de um acompanhamento de caráter episódico (deslocar-se a um local desconhecido, ir de férias, realizar uma compra fora do habitual, ir a um serviço de que não necessita regularmente, entre outras).

Analisamos agora os vários domínios em que um assistente pessoal poderá facilitar a vida de uma pessoa com deficiência visual.

No domínio das atividades da vida diária, as tarefas de um assistente pessoal poderão concretizar-se ao nível da higiene pessoal (nas atividades de higiene ou facilitação das mesmas, por exemplo participando na etiquetagem ou distinção dos artigos de higiene), leitura e/ou adaptação para formato acessível de documentos tais como cartas, publicidade, bulas de medicamentos, informação de alimentos não etiquetados em braille ou que não estejam escritos em caracteres ampliados, entre outras.

Dentro do lar, as atividades do assistente pessoal poderão materializar-se em apoio na compra, tratamento e escolha do vestuário (nomeadamente organizando e/ou coordenando as peças de vestuário por cores, identificando aspetos de desgaste ou sujidade que a pessoa não consegue identificar autonomamente), organização, limpeza e adaptação da casa (organização dos objetos para que sejam facilmente identificáveis pela pessoa com deficiência visual), apoio na preparação de refeições, utilização de equipamento doméstico não acessível (nomeadamente equipamento que funciona com base em informação visual), entre outras.

Ao nível do acompanhamento, o assistente pessoal poderá acompanhar a pessoa com deficiência visual na sua casa, no trabalho, no ensino e na formação profissional, na rua, em viagens ou atividades de lazer, bem como durante as férias. Neste âmbito, o assistente pessoal será, sobretudo, uma mais-valia em espaços desconhecidos, pois será ele que possibilitará à pessoa com deficiência visual poder movimentar-se, bem como utilizar equipamentos e usufruir verdadeiramente de serviços dos quais não conhece a localização ou dos quais não poderia à partida beneficiar. Será também o assistente pessoal que poderá fazer todas as descrições e leituras necessárias de forma a possibilitar à pessoa com deficiência visual o acesso à informação que seja relevante para cada atividade (podemos tomar como exemplo a leitura de legendas no cinema, a descrição de um cenário de um espetáculo de música ou teatro, de uma paisagem, e outros).

Outra área de grande relevância na intervenção de um assistente pessoal prende-se com as relações sociais. Neste âmbito, em momentos de convívio social ou profissional (como conferências, congressos ou viagens de trabalho), o assistente pessoal poderá identificar os presentes, comunicar à pessoa com deficiência visual quem está e dirigir a pessoa para aqueles com quem esta quiser estabelecer um diálogo. Embora este aspeto possa parecer de menor relevância face aos anteriores, não podemos esquecer que os relacionamentos sociais começam, muitas vezes, por uma identificação visual, o que, para quem não possui visão suficiente, pode ser fortemente limitativo. É de salientar também que os relacionamentos sociais são um importante veículo de estabelecimento de rede de contactos, muito relevante para o desenvolvimento no domínio profissional, pessoal, académico, político, e outros.

Para realizar estas tarefas adequadamente, o assistente pessoal deverá ser detentor de um conjunto de competências específicas que vão desde o domínio das técnicas de guia, conhecimentos de braille, noções básicas de orientação e mobilidade, noções de audiodescrição, bem como outras que poderão ser específicas para cada caso (por exemplo, dominar a utilização de um produto de apoio que seja especificamente utilizado por uma determinada pessoa).

Em suma, tal como podemos verificar, existe uma grande necessidade de aplicação de Modelos de Apoio à Vida Independente para as pessoas cegas ou com baixa visão. Contudo, será sempre importante não perder de vista que este apoio deve ser um complemento promotor da autonomia, e não um substituto das competências de autonomia pessoal que qualquer pessoa com deficiência deve ter.

Atualmente, a temática da vida independente assume uma grande importância nas preocupações daqueles que intervêm na promoção da inclusão das pessoas com deficiência em Portugal. Encontra-se, desde 2015, em funcionamento o CVI - Centro de Vida Independente, que resulta do projeto-piloto promovido pela Câmara Municipal de Lisboa lançado em dezembro de 2014. Este centro é uma organização sem fins lucrativos, constituída e dirigida por pessoas com diversidade funcional, que tem por objetivo base a defesa e a divulgação da filosofia de Vida Independente em Portugal. O CVI pretende desenvolver várias atividades, designadamente gerir sistemas de vida independente, divulgar e disseminar o conceito de vida independente, garantir a sustentabilidade do projeto-piloto e da prestação de assistência pessoal e ainda sensibilizar/formar e prestar consultoria na área da deficiência em geral.

Em conclusão, torna-se claro que a plena realização individual e o acesso a uma vida independente estão intimamente ligados à possibilidade de controlo sobre as escolhas da própria vida e ao acesso aos recursos em diversas áreas, tais como a cultura, a educação, a informação, o acesso ao conhecimento, que permitam opções informadas e decisões livres sobre a própria vida e sobre a forma de participação na sociedade.

Neste enquadramento, importa mobilizar esforços e criar estratégias e estruturas para acautelar o acesso a todas estas áreas, de forma a garantir que temos pessoas com deficiência incluídas, autónomas, participativas e realizadas. Afinal, nunca devemos perder de vista que todos os projetos a desenvolver para a inclusão de pessoas com deficiência devem ter como base a ideia de “nada sobre nós, sem nós”.

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