“Hoje em dia, a autonomia das crianças e jovens cegos está muitíssimo reduzida. As competências de leitura e escrita são cada vez menos trabalhadas. Quando uma língua é utilizada para estabelecer uma comunicação escrita o domínio insuficiente desta competência, torna o entendimento das mensagens difícil ou incompreensível de todo. Um dos problemas está em perceber e fazer perceber se a substituição do “Ler” pelo “Ouvir Ler” é uma vantagem ou uma desvantagem para as crianças e jovens cegos que frequentam as nossas escolas e de que forma isto influencia o futuro de um indivíduo. Será possível estudar matérias como inglês, matemática ou latim sem uma leitura efectiva?” (Fernandes, 2014) - Será possível exercer uma profissão como a de auxiliar administrativo ou de professor sem saber ler, pois do que se trata é de saber ler, tal não me parece viável. Aliás, se propuséssemos aos pais e a docentes de crianças normovisuais que os seus filhos e alunos estudassem as disciplinas dos seus currículos escolares sem aprenderem a ler, é certo que tanto pais como professores veriam esta proposta como absurda. Ora bem, se “Ouvir ler” não é suficiente para um normovisual estudar ou desempenhar qualquer profissão, por que deverá sê-lo para um cego?

Já no século XVIII Valentin Haüy, adepto das filosofias sensistas, que defendiam que o mundo nos chegava através dos sentidos e era transformado em conhecimento depois da informação ser purificada no cadinho da razão, concluiu que a única forma de proporcionar aos cegos uma integração efectiva na sociedade era dar-lhes as ferramentas necessárias para trabalharem e acederem à cultura. No que se refere à leitura, Valentin Haüy achou que o sentido que poderia substituir a visão era o tacto. Não me parece necessário fazer uma análise do método de Valentin Haüy, mas sim realçar o facto de que tanto Charles Barbier como Louis Braille, inventor do sistema que nos permite “Ler” terem, tal como Haüy, dirigido os seus esforços no sentido de desenvolverem sistemas de escrita e de leitura táteis.

O sistema Braille está disponível desde 1837, e apesar da adesão dos cegos a esta forma de escrita e de leitura, os videntes, professores de muitos cegos rejeitaram-no durante muito tempo, possivelmente por isto significar a aprendizagem de uma grafia diferente. Passados alguns anos, o sistema Braille impôs-se. E a grande prova da sua consistência é o facto de ter chegado até hoje adaptando-se a áreas do conhecimento que se desenvolveram após a sua invenção.   

A escrita a tinta, apesar de existir há milhares de anos, conheceu uma grande difusão com a invenção da imprensa de Gutenberg. Só a partir deste momento foi possível pôr à disposição de muita gente em simultâneo as obras que antes eram copiadas à mão. Em relação à escrita táctil, só foi possível pensar em formas de impressão mais sistemáticas com o aparecimento do sistema de Louis Braille, uma vez que o de Valentin Haüy não passava de meros exercícios de ortografia e o de Charles Barbier representava sons e não letras.

Em Portugal, as primeiras tentativas para imprimir Braille foram feitas por Cândido Branco Rodrigues no final do século XIX. Um amigo que era tipógrafo conseguiu replicar o Braille em tipos móveis semelhantes aos da imprensa e assim tornar possível a impressão em Braille. Mais tarde, em 1933, o Asilo-Escola António Feliciano de Castilho possuiu uma imprensa com uma máquina de estereotipar chapas de zinco, mas não tinha orçamento nem recursos humanos próprios dedicados apenas à impressão em Braille. Destas tentativas ficaram alguns volumes de interesse histórico e uma colecção de 33 números da “Revista dos Cegos”, publicados entre 1933 e 1948.              

“A carência de livros em braille apresentava aspectos inquietantes. O número de obras de variada índole, recreativas e de informação geral, era extremamente reduzido e não dava, já nessa altura, para satisfazer as necessidades daqueles que se serviam da leitura táctil. Nos colégios internos e outros centros de estudo organizado as obras escolares eram normalmente ditadas e transcritas à mão, e depois extraíam-se cópias à medida que iam sendo necessárias.” (Baptista, 2003)

A busca de condições financeiras e logísticas para instalar uma imprensa Braille foram recompensadas em 9 de Agosto de 1956. A Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto aprovou a criação do Centro de Produção do Livro para o Cego, devido aos esforços do Professor Albuquerque e Castro, ao apoio técnico e financeiro da American Foundation for Overseas Blind e à disponibilidade do governo manifestada através do Subsecretário de Estado da Assistência Social, Dr. José Guilherme de Melo e Castro, que garantiu um apoio financeiro considerável. Deste centro, agora Centro Professor Albuquerque e Castro, CPAC, saíram e saem inúmeras obras das várias áreas do conhecimento, das quais destaco a revista Poliedro publicada ininterruptamente desde 1956.

Durante alguns anos, mais precisamente até 15 de Outubro de 1990, o Centro Professor Albuquerque e Castro era a única imprensa Braille existente em Portugal. Nesta data apareceu o Centro de Produção Braille da ACAPO. A primeira Direcção Nacional da ACAPO elegeu entre outras prioridades a criação de uma imprensa Braille que respondesse às crescentes necessidades dos cegos portugueses, tanto no que diz respeito a livros de várias áreas do conhecimento, como de periódicos, dos quais se destacam a revista Traço de União, Janeiro de 1991, que mais tarde, durante o mesmo ano se transformou na revista Luís Braille, e assessoria na produção de Braille noutras vertentes da vida quotidiana dos cegos, como por exemplo, embalagens de medicamentos e alimentos, plantas de espaços e outros. Pouco tempo depois, a ACAPO constituiu um grupo que veio a desenvolver um programa de impressão Braille, o TATAIB, que começou a utilizar no Centro de Produção Braille.

Nesta década, a tecnologia, principalmente a que permitia o acesso a computadores pessoais teve um grande desenvolvimento. Apareceram sintetizadores de voz, linhas Braille, impressoras Braille, programas de leitura de ecrã, OCR's programas de reconhecimento óptico de caracteres e programas para impressão em Braille. As novas tecnologias não vinham “matar” o Braille, mas sim potenciá-lo. Era reconhecido por todo o mundo que o Braille continuava a ser essencial ao desenvolvimento da pessoa cega. De forma semelhante ao que se passava com as pessoas normovisuais, os cegos, apesar dos seus equipamentos serem bastante mais caros, passaram a ter acesso em suas casas, nos locais de trabalho e nas escolas a tecnologia que lhes abria horizontes. Esta verdadeira revolução teve características diferentes da revolução que foi a invenção do sistema Braille. Nessa altura, o que estava em causa era o acesso dos cegos à informação escrita e foi necessário desenvolver um sistema que desse resposta a este problema. No caso das novas tecnologias assistiu-se a uma adaptação para os cegos de produtos já existentes para os normovisuais e à criação de novos equipamentos que nasceram para melhorarem o desempenho das pessoas cegas no trabalho, na escola e na sua vida privada.

Mesmo com todo este avanço tecnológico, o Braille não podia e não devia ser substituído pelos novos equipamentos que permitiam “Ouvir ler”. Nessa altura, o Dr. Filipe Oliva chamou-me a atenção para o facto dos sintetizadores de voz não virem resolver tudo. Confesso que não o compreendi, achei até que haveria alguma resistência aos avanços tecnológicos, mas pouco tempo depois apercebi-me da veracidade daquilo que me dissera, quando vi que era impossível estudar, por exemplo, línguas estrangeiras sem utilizar o Braille como meio de leitura. O tempo das máquinas de estereotipar chapas de zinco estava a ser substituído pela impressão em impressoras que imprimiam papel ou chapa de acordo com as necessidades.

Entre os equipamentos que permitem o acesso à leitura do Braille surgidos nos anos noventa do século passado, destaco as linhas Braille e as impressoras Braille. É verdade que ambas nos dão Braille. Uma, a linha Braille, em tempo real controlada por um leitor de ecrã e outra, em papel, depois de determinado conteúdo ter sido preparado. À primeira vista podemos pensar que estes dois meios estão em oposição; quer dizer um em vez de outro. Tal não é verdade, para um cego eles complementam-se. Podemos ainda pensar que pelo facto da leitura do Braille ser analítica, o cego só vê o que está debaixo dos dedos, as questões de forma de um texto não são importantes - “ler é mergulhar num texto e ficar imerso no pensamento do autor para lhe captar o conteúdo e a forma.” (Oliva, 2005). O conteúdo e a forma são indissociáveis. Se retrocedermos a Ferdinand Saussure, constatamos que num signo o significante e o significado estão intrinsecamente ligados. A palavra não pode ser apenas vista pelo seu valor semântico. “O significado (…) não existe fora da sua relação com o significante — nem antes, nem depois, nem em parte alguma; é o mesmo gesto que cria o significante e o significado, conceitos que não podemos pensar um sem o outro. Um significante sem significado é simplesmente um objecto, é mas não significa…” (Ducrot; Todorov, 1982)

Na escrita a tinta, a forma de um texto é importante. Não fosse isto e os autores nunca fariam parágrafos, nunca disporiam os seus poemas em estrofes diferentes, os refrões da poesia dita ou cantada nunca estariam destacados colocados mais para o centro da página e as manchas de texto teriam um aspecto anárquico, verdadeiramente agressivo à vista. Ora o cuidado que se manifesta na impressão a tinta deve também ser tido em conta na impressão em Braille. A única forma de um cego fazer uma imagem táctil da mancha de um texto é ter acesso a este em papel. Esta é na minha opinião uma das grandes diferenças entre a leitura em papel e numa linha Braille. Apesar dos leitores de ecrã que controlam as linhas Braille poderem fornecer a informação da localização no texto do conteúdo apresentado na linha, isso não me parece suficiente para que alguém fique com uma noção exacta da forma do texto. Não é por acaso que as Grafias Braille para as línguas têm capítulos dedicados à formatação de texto. Pormenores como centrar títulos, indicar parágrafos, chamar a atenção para texto realçado ou indicar que um verso mudou de linha, são demasiado importantes para serem deixados ao acaso. Devemos ser rigorosos com o Braille como somos com a escrita a tinta. Há alguns anos, um amigo que foi aluno do Professor Albuquerque e Castro disse-me que este ensinava aos seus alunos que não deviam poupar papel quando escreviam Braille, deviam sim ser rigorosos.

O livro é facilmente transportado e lido em qualquer local não dependendo de energia ou de um suporte tecnológico. Às vezes cruzamo-nos com pessoas cegas, que no autocarro, no comboio, no café ou em qualquer outro sítio lêem Braille. O Braille faz parte da identidade da pessoa cega. Se concordamos com esta ideia, devemos prestar toda a atenção à sua produção. Do mesmo modo que o facto de ter uma impressora a tinta não faz do seu dono um Maquetista ou Arte Finalista de uma gráfica, o facto de possuirmos uma impressora Braille não faz de nós editores de Braille. A produção de Braille deve ser feita por profissionais e nunca por amadores. Os textos precisam de ser digitalizados, corrigidos, revistos mais do que uma vez antes de se imprimirem e as pessoas que desempenham estas tarefas têm de ser profundos conhecedores da Grafia Braille para a Língua Portuguesa e da Língua Portuguesa. Está nas nossas mãos fazer com que o sistema Braille seja encarado como a base da instrução dos cegos e respeitado como fazendo parte da sua identidade em todo o mundo. Não consigo deixar de voltar a referir, como já fiz noutro artigo, uma citação que me parece sintetizar esta ideia de forma muito clara:

A Conferencia Ibero-americana del Braille (Buenos Aires, Setembro de 1999) considerou que o Braille "constituye una de las bases de la identidad de las personas ciegas; que refuerza su autoestima, asegura su independencia y posibilita su integración" e "que por la significación que tiene en la personalidad e identidad de la persona ciega, el libre ejercicio del sistema braille es un derecho que debe protegerse y volverse accesible a todos".” (Reino, 2000)  

Bibliografia

BAPTISTA, José António. 2005 (A Criação do Centro de Produção do Livro para o Cego): Porto

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. 1982 (Dicionário das Ciências da Linguagem) (trad. António José Massano; José Afonso; Manuela Carrilh [et al.]): Lisboa: Publicações D. Quixote Lda.

FERNANDES, João Eduardo dos Santos.2014 (Importância do Braille no início do ciclo ensino-aprendizagem dos alunos cegos e com baixa visão): Porto

OLIVA, Filipe P. 2005 (O primado da leitura e o recurso de ouvir ler) www.lerparaver.com

REINO, Vitor. 2000 (170 anos depois: Algumas considerações de ordem histórica sociológica e psicopedagógica sobre o sistema Braille) Lisboa: Biblioteca Nacional

Por decisão pessoal, o autor deste artigo não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico.