No rescaldo das Olimpíadas do Braille, organizadas pela ACAPO, entendemos ser esta uma altura adequada para passar os nossos dedos jurídicos pelo Braille. Assim, ao longo do presente artigo, procuraremos evidenciar o papel que a ordem jurídica portuguesa reconhece ao Braille bem como aos documentos nele redigidos, tentando assim descortinar se há ou não um direito efetivo ao uso do Braille, e em caso afirmativo em que termos e circunstâncias.

A primeira nota que encontramos na ordem jurídica portuguesa sobre a possibilidade de uso do sistema de leitura e escrita inventado por Louis Braille tem cerca de 87 anos. Encontramo-la no Decreto n.º 18.373, de 22 de maio de 1930, que aprova o método de leitura e escrita Braille para uso dos cegos. Este diploma foi emitido pelo então designado Ministério da Instrução Pública, e pretendia harmonizar este método de leitura e escrita com a nova ortografia portuguesa. É, pois, um diploma que surge no quadro do que hoje chamaríamos o sistema educativo, e que estabelece aquela que terá sido, talvez, a primeira grafia Braille para a língua portuguesa – ou ao menos a primeira com reconhecimento e relevância oficiais. Essa relevância é-nos dada pelo próprio texto da lei, quando aprova este sistema de leitura para uso dos cegos, pelo que a partir de então estes podem licitamente ler qualquer documento que neste sistema lhes seja apresentado, conquanto que hajam adquirido as competências de leitura e escrita Braille. Nos nossos dias, o ensino da leitura e escrita Braille é considerada uma das adaptações curriculares de que podem beneficiar os alunos cegos ou com baixa visão (n.º 2 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de janeiro), sendo o seu ensino um dos objetivos a assegurar pelas designadas escolas de referência (al. B) do n.º 3 do artigo 24.º do mesmo diploma).

Daqui podemos inferir que há, pelo menos, uma forma de leitura e escrita oficialmente reconhecida para uso dos cegos – o sistema Braille. Esta conclusão é particularmente útil numa altura em que, por exemplo, o setor da banca pretende obrigar as pessoas cegas a um reconhecimento adicional da validade da sua assinatura com base na premissa de que as pessoas não podem ou não sabem ler os documentos que lhes são apresentados pelos bancos. Ora se o sistema de leitura e escrita para uso dos cegos oficialmente reconhecido em Portugal é, desde 1930, o Braille, é no mínimo questionável obrigar as pessoas cegas a uma formalidade adicional de reconhecimento de assinatura para atestar a validade de um documento quando o signatário é uma pessoa cega, alegando que esta não pode ou não sabe ler o documento que lhe é apresentado (n.º 3 do artigo 373.º do Código Civil). E é no mínimo questionável sobretudo porque, existindo este sistema de leitura e escrita oficialmente reconhecido como tal para uso das pessoas cegas, as entidades que pretendem fazer valer-se desta lei nem tão-pouco tentam apresentar-lhes esses documentos neste formato, ou noutro que elas possam entender (como por exemplo o formato digital ou áudio, que também são formatos alternativos reconhecidos no quadro do sistema educativo português como aptos para uso das pessoas cegas).

Esta nossa conclusão veio, aliás, a ser reconhecida com força de norma diretamente aplicável na ordem jurídica portuguesa com a aprovação e ratificação, por Portugal, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Com efeito, estabelece o artigo 21.º da referida Convenção, no quadro da liberdade de expressão e opinião e acesso à informação, que os Estados Partes (como Portugal) tomam todas as medidas apropriadas para garantir que as pessoas com deficiência podem exercer o seu direito de liberdade de expressão e de opinião, incluindo a liberdade de procurar, receber e difundir informação e ideias em condições de igualdade com todas as outras pessoas, e através de todas as formas de comunicação da sua escolha. Este direito, detalham-no as diversas alíneas do citado artigo 21.º, inclui o fornecimento às pessoas com deficiência de informação destinada ao público em geral em formatos e tecnologias acessíveis apropriados aos diferentes tipos de deficiência, de forma atempada e sem qualquer custo adicional, mas também a aceitação e facilitação do uso de meios como o Braille ou os meios, modos e formatos de comunicação acessíveis para comunicação das pessoas com deficiência nas suas relações oficiais, para além de se instar também a que as entidades privadas que prestam serviços ao público em geral (como os bancos, mas não só) a prestar informação e serviços em formatos acessíveis e utilizáveis pelas pessoas com deficiência.

O Braille aparece referido ainda noutras disposições pertinentes da Convenção a que nos vimos referindo, designadamente na al. A) do n.º 3 do artigo 24.º, que confere aos Estados partes a obrigação de facilitar a aprendizagem do Braille, como forma de possibilitar a apreensão de competências de desenvolvimento prático e social de modo a facilitar a plena e igual participação das pessoas com deficiência na educação enquanto membros de pleno direito da comunidade educativa, ou ainda a al. D) do n.º 2 do artigo 9.º, que prevê a existência de sinalética em Braille em edifícios e outros espaços abertos ao público. No primeiro destes dois casos, já vimos o que diz a legislação portuguesa no âmbito do sistema educativo. No segundo caso, é útil referir, entre outras, as regras constantes do n.º 7 da secção 2.11.1 das regras técnicas anexas ao Decreto-Lei n.º 163/2006, relativo a edifícios e estabelecimentos em geral, norma essa que prevê que nos locais onde forem previstos equipamentos de auto-atendimento, pelo menos um equipamento para cada tipo de serviço deve possuir teclas identificadas com referência táctil, dando-se como exemplos o alto-relevo ou o Braille; ou a norma constante do n.º 5 da secção 2.13.1, que prevê, para o caso dos locais onde sejam previstos telefones de uso público, que pelo menos um deles utilize números do teclado com referência táctil, dando uma vez mais os exemplos do alto-relevo ou Braille. Idêntico exemplo é de novo apontado na secção relativa a comandos e controlos, no capítulo relativo à acessibilidade do percurso, detalhando o ponto 4.12.2 que os botões de campainha, os comutadores de luz (vulgo interruptores) e os botões do sistema de comando dos ascensores e plataformas elevatórias (vulgo, os botões de acionamento ou comando dos elevadores) devem possuir identificação táctil, exemplificando-se aqui uma vez mais com o Braille ou alto-relevo. Há, pois, como vimos, muito ainda que fazer neste domínio para dar plena execução ao disposto na própria Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nesta matéria.

Ainda sobre o Braille, é útil referir que, em desenvolvimento dos princípios estabelecidos na Lei de Bases da Prevenção, Habilitação, Reabilitação e Participação da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 38/2004), foi criado em 2009 o Núcleo para o Braille e Meios Complementares de Leitura, pelo Despacho n.º 12966/2009, publicado na II Série do Diário da República de 2 de junho de 2009. Segundo este despacho de criação, são competências deste Núcleo, entre outras, emitir parecer sobre quaisquer questões relacionadas com a definição e aplicação do Braille e de outros meios complementares de leitura para pessoas cegas ou com baixa visão, bem como prestar apoio técnico a quaisquer entidades, públicas ou privadas, em questões relacionadas com o uso do Braille ou de outros meios complementares de leitura. Compete ainda a este núcleo avaliar e adaptar a simbologia Braille face às evoluções técnicas e científicas, propondo aos diferentes membros do Governo com competência para tal a aprovação das diferentes grafias e novas simbologias Braille.

A legislação portuguesa dá relevo ao Braille nos mais variados domínios da vida em sociedade. No direito do consumo, o Decreto-Lei n.º 10/2015 prevê, no seu artigo 33.º, a obrigatoriedade de disponibilizar, no ato da compra e em uma etiqueta por produto, a impressão em Braille da informação tida como necessária para cada produto, nomeadamente a denominação, caraterísticas principais e data de validade, sempre que uma pessoa com deficiência visual faça as suas compras em estabelecimentos de cadeias de comércio com pelo menos cinco estabelecimentos em Portugal com área de superfície superior a 300 metros quadrados em cada um desses estabelecimentos. Falamos, genericamente, de super e hipermercados de cadeias com mais de cinco lojas em território nacional. Esta obrigação existe em pelo menos um estabelecimento por concelho, embora seja frequente, nos grandes concelhos como Porto ou Lisboa, encontrar-se em mais do que um estabelecimento. Existe ainda legislação a prever a rotulagem em Braille nos medicamentos destinados a uso humano (Decreto-Lei n.º 176/2006, entretanto alterado), ou nos medicamentos veterinários (Decreto-Lei n.º 148/2008). No âmbito das comunicações, a Lei das Comunicações Eletrónicas, na versão resultante da alteração introduzida pela Lei n.º 51/2011, prevê a obrigatoriedade de disponibilização de fatura simples em Braille para utilizadores com deficiência que assim o requeiram (al. C) do n.º 2 do artigo 91.º), mas prevê também a regulamentação, pela Autoridade Nacional de Comunicações, de aspetos relativos ao relacionamento das operadoras com os clientes com deficiência. Nesse quadro, o artigo 11.º do Regulamento n.º 829/2016, daquela autoridade, prevê para os operadores de comunicações um especial dever de cuidado na informação aos clientes com deficiência, bem como a disponibilização de toda a informação pertinente em suportes acessíveis aos mesmos, designadamente áudio ou em versões de grafismo aumentado. Em nosso entender, o uso do advérbio “designadamente” não pode, de forma alguma, excluir o uso do Braille, até pela referência que já atrás deixámos feita ao artigo 21.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Para tanto, basta que a pessoa escolha essa modalidade de leitura e escrita, pois como vimos, o princípio geral da Convenção é adequar os formatos de disponibilização da informação às preferências de cada um dos utilizadores, e não apenas adotar um método em favor de outro. Relevante é, como em geral acontece nos contratos de consumo, que o utilizador possa ler, autonomamente, a informação que lhe é prestada ou os documentos que o vinculam, dando-lhe a liberdade de ler tais documentos quando quiser, como quiser, ao ritmo que quiser e as vezes que entender adequadas até estar esclarecido quanto ao que nele se contém.

Aproximando-nos do campo da mais elementar cidadania, já vamos vendo na legislação portuguesa algumas referências ao uso do Braille como meio de sensibilização no capítulo das políticas públicas. É o caso da política pública antitabágica, a qual, como dispõe a Lei n.º 37/2007 no seu artigo 20.º, comete ao Estado o dever de realizar uma política pública de informação e prevenção do tabagismo, com recurso sempre que possível ao Braille.

Por fim, os mais elementares direitos de cidadania também despertaram, ainda que tardiamente, para o Braille. Longe de estar ainda concretizado o direito geral a votar com recurso a uma matriz Braille, o que sem dúvida potenciará muito a autonomia das pessoas com deficiência visual, tal direito encontra-se já previsto para as votações nos referendos regionais promovidos na Região Autónoma dos Açores. Com efeito, ao abordar o modo como vota cada eleitor, o n.º 4 do artigo 115.º da Lei Orgânica n.º 2/2015, relativa aos referendos naquela região autónoma, estipula que sempre que o leitor requerer uma matriz do voto em Braille, esta ser-lhe-á entregue sobreposta ao boletim de voto, para que o eleitor possa proceder à sua leitura e expressar o seu voto, o que será feito com o preenchimento da cruz recortada no quadrado da lista correspondente à sua opção de voto – no caso do referendo, as cruzes serão apenas “sim” e “não”, por regra. Tudo isto poderá sempre ser melhorado, até porque, como dispõe o n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 43/90, desde a revisão operada pela Lei n.º 45/2007, qualquer cidadão pode elaborar petições à Assembleia da República em Braille.

No presente artigo não pretendemos esgotar as previsões que existem no Direito português quanto às possibilidades de uso do Braille, até porque muitas das obrigações de informação neste formato começam já a ser contempladas também em regulamentos da União Europeia. Procurámos, antes, traçar um quadro geral da relevância dada pelo ordenamento jurídico português ao Braille, que é efetivamente o método de leitura e escrita oficialmente reconhecido para uso das pessoas cegas. Isto leva-nos a concluir que o Braille não só está vivo e bem vivo, como ainda que ele é, de facto, relevante e essencial para a leitura e escrita das pessoas com deficiência visual, sem prejuízo do reconhecimento e da validade de outros formatos que permitem às pessoas cegas ler e escrever de forma autónoma. Na verdade, o conselho constante de um anúncio publicitário divulgado há largos anos continua, também, a ser plenamente válido também quanto ao Braille. Por isso, o nosso conselho é que, também no Direito, vá pelos seus dedos.