Histórias da bengala branca
Qual o momento certo para se começar a usar bengala branca? As crianças devem usar uma bengala a partir de que idade? Advertimos, desde já, que não temos uma única resposta para estas questões. Nem Duarte, Irina, Rodrigo ou Teresa. Porém, como resposta, contaram-nos a sua história. Falaram sobre o dia em que conheceram uma bengala branca.
O início
O percurso de Duarte Gaspar agora começou. Tem cinco anos e foi há poucos meses que conheceu uma bengala branca. Não porque a equipa que o acompanha assim o sugerisse mas a curiosidade (instinto?) da mãe fê-lo começar a percorrer alguns caminhos acompanhado por uma bengala.
Duarte nasceu com Amaurose Congénita de Leber, uma doença que se carateriza pela perda da visão desde o nascimento. Desde os dois meses é acompanhado no CAIPDV – Centro de Apoio à Intervenção Precoce na Deficiência Visual – e mais tarde pela Delegação de Leiria da ACAPO, onde usufrui do serviço de estimulação e desenvolvimento e hipoterapia.
Depois da fase do luto, que os levou a “chorar quase uma semana”, como recordam, os pais, Susana e Bruno procuraram as “melhores oportunidades” que tinham para oferecer ao filho. Limitaram-se a ser pais, concluem agora. Leram artigos, reportagens, livros sobre a deficiência visual, assistiram a tutoriais, falaram com outros pais, tudo com o objetivo de responder eficazmente aos desafios colocados pelo crescimento de Duarte.
Nestas pesquisas, Susana cruzou-se com uma reportagem onde uma criança norte-americana usava uma bengala branca para circular em segurança. Identificou-se. Duarte era cego, criança e os pequenos acidentes domésticos eram constantes. Até que lhe apresentaram uma bengala.
Recordamos, Duarte tem cinco anos. Gosta de saltar, correr, andar de escorrega e baloiço. Porém, contrariamente ao que pensavam, Duarte começou logo por fazer um uso responsável da bengala e tornou-se inseparável dela em alguns percursos. Não na escola, que conhece bem, mas no percurso casa-escola ou enquanto passeia pela aldeia. Percebeu que a bengala antecipava os obstáculos que teimavam em ir contra a sua cabeça. “Foi tudo tão tranquilo e natural…”, diz Susana.
O treino da bengala, ou a habituação a este produto de apoio, que o poderá vir a acompanhar o resto da vida, tem sido essencialmente feita pelos pais, que o fazem porque assim acham “correto”. “Acreditamos que desta forma será mais fácil quando ele começar a ter aulas de orientação e mobilidade”.
Esse dia chegará quando tiver 6 ou 7 anos e for para a escola primária. Talvez nessa altura já se faça acompanhar por uma bengala mais resistente. Por agora utiliza uma antena de um brinquedo, que orgulhosamente nos mostrou via skype. “É tão gira”, dissemos nós.
Duarte achou que as bengalas que lhe apresentavam eram pesadas demais, por isso, antes que começasse a recusá-la, os pais encontraram esta solução: uma antena laranja de um carro. Faz parte desta fase lúdica em que se encontra. Em breve iniciar-se-á outra.
A recusa
Talvez os pais de Irina Francisco se identificassem com Susana e Bruno. Também Irina nasceu com Amaurose Congénita de Leber e aos poucos tem perdido a visão.
No Centro Helen Keller, no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos e na ACAPO teve aulas de orientação e mobilidade. Queria aprender porque sabia que a bengala era uma inevitabilidade mas que sempre protelou. “Sempre encarei o uso da bengala como um sinal exterior, demasiado evidente, e tinha receio que o uso da bengala me colocasse em situações constrangedoras”. “No fundo não me sentia confortável em assumir a minha falta de visão. Sempre gostei de passar despercebida e isso deixava-me numa exposição que me deixava desconfortável”, conclui. Para isso, contribuiu também o facto de ter baixa visão. “Como tenho baixa visão e uso óculos e a maioria das pessoas como não entende o que isso significa, eu achava que isso causaria confusão na cabeça dos outros, que se questionariam por que motivo eu usaria óculos e ao mesmo tempo uma bengala”.
Todavia, durante largos anos saiu sempre acompanhada por uma bengala de sinalização – que serve para informar os outros que se tem deficiência visual – mas que nunca saiu da sua mala. O processo de aceitação, como lhe chama, demorou a ser percorrido, mais precisamente até 2015.
Nesse ano, a já professora de português e espanhol, participou num encontro de jovens com deficiência visual que se realizou em Tirrenia, em Itália. Foi lá lhe que lhe disseram uma coisa muito simples mas havia de mudar a sua vida: “Às vezes vou na rua e aproveito para olhar para os letreiros, para as montras e para o que me rodeia, sem a preocupação de olhar para o chão para detetar eventuais obstáculos, porque a bengala faz isso por mim!”. Este elogio à bengala e as dezenas de jovens que conheceu contribuíram para que chegasse a Portugal “com a convicção de que ia começar a usar uma bengala”. Não uma bengala qualquer. Tinha de ter cor, de preferência cor-de-laranja, a sua cor preferida, mas “o mais aproximado que consegui foi o cor-de-rosa. Verdade seja dita que nem distingo o laranja do rosa, para mim são cores iguais!” [risos].
Irina diz que a cor da bengala foi uma das formas que encontrou para desmistificar o uso deste produto de apoio: “Se era para ser diferente, então sejamos diferentes”. Sabia que existem “fundamentos sólidos” para que a bengala seja branca mas decidiu fintá-los e tratar este produto de apoio como qualquer outro objeto estético. “É um objeto de uso quotidiano, tal como os óculos. Por que não há-de ser também ao meu gosto?”, interroga.
Foi esta bengala que mudou a vida de Irina. Os comentários que tinha medo de ouvir, os olhares que queria evitar, já não importavam. “Na rua deixei de ouvir comentários degradáveis sempre que esbarrava em alguém. Agora toda a gente “abre alas” para eu passar. Nos transportes deixei de me sentir constrangida por me sentar. Deixei de evitar andar de autocarro por não conseguir identificá-los ao longe para os mandar parar.” A bengala, neste caso cor-de-rosa, abriu-lhe oportunidades para uma vida mais inclusiva, autónoma e segura. “E feliz”, termina.
A autonomia
Ricardo Branco vive e trabalha em Lisboa, num dos mais conceituados escritórios de advogados do país, onde é consultor jurídico, e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde é professor.
Nos trajetos diários, como se desloca de transportes públicos, não abdica de usar a sua bengala branca. “A bengala dá-me total autonomia para andar bem. Detetar obstáculos. E dá-me a segurança de que sou identificado pelas pessoas como alguém com a qual precisam ter uma interação com mais cuidado.”
A bengala não serve só para ver mas também para ser visto. Sempre que lhe oferecem ajuda, mesmo quando nem precisaria, Ricardo não a declina. “Agradeço sempre a ajuda e aceito-a. As pessoas têm que ser persuadidas que ser ajudado é bom.”
Apesar disso, Ricardo gosta de ser autónomo nas suas deslocações, de decidir que caminhos seguir, sem ter de depender de terceiros. “Até porque como a minha mãe me dizia 'Ninguém pense que uma pessoa com deficiência visual que não usa bengala fica com melhor ar!”'.
Talvez tenha sido o desejo de ser independente que o leva a recorda-se “perfeitamente” da primeira vez que lhe mostraram uma bengala branca. “Isto é uma bengala para quando começarem a andar na rua sozinhos. E é muito bom”. Estas palavras foram proferidas pelo seu professor de locomoção, “como se dizia na altura”, no Centro Helen Keller. Ricardo tinha 6 anos e uma grande vontade de andar sozinho na rua.
Mas as primeiras aulas só lhe foram lecionadas na transição do 2.º para o 3.º ano quando tinha 7 anos. Foi o primeiro aluno de Peter Colwell, atualmente técnico de acessibilidade na ACAPO. Desses tempos guarda as melhores recordações. “Lembro-me perfeitamente de ele me dizer “há ali uma pastelaria com uns mil folhas ótimos. Irei oferecer um ao Ricardo se conseguir chegar até lá”. “Eram passeios fenomenais”, recorda.
Os primeiros frutos destas aulas foram colhidos quando tinha 12 anos e começou a deslocar-se sozinho, e mais tarde, aos 15, quando começou a andar de transportes públicos. Só ele e a sua bengala. É sempre assim, com raras exceções: “Em casa não uso bengala e no local de trabalho, por vezes também não uso. Mas se for para receber alguém visto o casaco e pego na bengala”. Neste momento, recorda-se das palavras do pai que hoje encara como sábias: “O meu pai dizia que a bengala me dava respeitabilidade, assim como o facto de eu lidar com ela sem complexos e com arejo”. Por isso, nunca teve problemas em se fazer acompanhar por uma bengala, nem nunca a rejeitou.
Conhece sim, alguns casos em que a relação não foi tão tranquila. No caso das mulheres consegue perceber. “É um artefacto que contradiz com a estética”. Mas sabe, por experiência, que a estética ainda não se coaduna com a qualidade. “Todas as bengalas mais elegantes que tive foram para o 'galheiro'. Tenho sempre de voltar a um dos clássicos”, diz entre risos.
Quem agradece a coleção de bengalas é Bárbara, a sua filha de quatro anos, que se orgulha de “andar com o pai de bengala”, “de apanhar as que se encontram espalhadas pela casa e colecioná-las”. Talvez seja esta uma forma de dar continuidade à “respeitabilidade” que o avô tanto falava.
Uma vida nova
A cegueira de Teresa Simões chegou a conta-gotas. Sabia que gradualmente estava a perder a visão mas “quando olhava para trás não sabia o quanto tinha perdido”.
O ano de 1995 representou uma viragem na sua vida. Após perder o irmão, no espaço de um ano, Teresa perdia também “completamente a visão”.
Numa das consultas de oftalmologia, onde ainda procurava uma luz ao fundo do túnel, o médico disse-lhe que a situação era irreversível e que no futuro “nem um café iria conseguir tirar”. Estas palavras contribuíram para que construísse uma imagem negativa das pessoas cegas. Uma imagem que não queria para si. “Acho que o meu problema nunca foi ficar cega mas pensar que ia ficar dependente dos outros, deixar de ter a minha vida própria”.
Após reorganizar a sua vida profissional, Teresa deixou a sua aldeia perto da Lourinhã, onde vivia com os pais, para iniciar um programa de reabilitação no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa.
Na primeira aula de orientação e mobilidade, ainda sem bengala, percebeu que para recuperar a sua autonomia poderia precisar deste produto de apoio. Conhecia a sua deficiência mas não lhe conhecia as limitações. O professor fê-la perceber que via menos do que pensava e com esta constatação iniciava-se o treino da bengala. “O pouco que via mais a ajuda da bengala ajudou-me muito. Trouxe-me conforto, confiança e segurança.”
O único revés deu-se quando decidiu usar a bengala numa das visitas à sua terra-natal. Percebeu que o silêncio que ouvia quando passava na rua era sinal de preconceito e da falta de conhecimento para com a deficiência visual. Durante anos não conseguiu voltar a usar a bengala quando visitava os seus pais.
Em Lisboa, sente-se como 'peixe na água' e quando assim não se sente pede apoio à ACAPO. “Quando passo a frequentar um espaço gosto de o conhecer antes e saber o que me rodeia”. Não por só por segurança ou curiosidade. Teresa termina explicando que acima de tudo procura transmitir uma boa imagem, sua e de todas as pessoas com deficiência visual.