Nos dias que correm, os computadores, os telemóveis, o digital e o online são parte indispensável das nossas vidas em sociedade. Seja para trabalhar, comunicar ou divertir-se, as pessoas cegas e com baixa visão, através de ferramentas como leitores e ampliadores de ecrã, linhas Braille ou OCR, aproveitam tudo o que o mundo digital e online tem para oferecer, sendo este, muitas vezes, um meio essencial à sua autonomia e inclusão. Se "nada sobre nós sem nós", também a participação e auto-representação das pessoas com deficiência em tudo o que respeita ao mundo digital, e em particular às ferramentas que lhes permitem aceder e utilizar as tecnologias, se reveste de essencial relevância. Esta participação pode ser feita de variadas formas, tais como pugnar pelo desenho universal dos produtos e serviços, aperfeiçoar os sistemas de apoio às ajudas técnicas, entre outras. Porém, existe uma forma alternativa que é o mote para este artigo, o “fazer nós mesmos” ou “do it yourself”.

 No verão de 2006 tomei conhecimento, através da  Internet, de um projecto de dois programadores australianos, ambos cegos, que se propunham a criar um leitor de ecrã para o Microsoft Windows, totalmente gratuito e de código aberto. Tratava-se do NVDA, Nonvisual Desktop Access. A essa época apenas existiam leitores de ecrã pagos, tais como o JAWS for Windows, que, como ainda hoje, tinham custos proibitivos para virtualmente todas as bolsas. A solução era recorrer às ajudas técnicas - para quem podia - ou arranjar versões piratas e ilegais destes softwares para poder usar o computador. Com o NVDA, o Mike e o James pretendiam criar uma alternativa aos leitores de ecrã comerciais, destinado a todos, mas especialmente àqueles que, de outra forma, não podiam ter um leitor de ecrã para utilizarem o seu computador com Windows. Por outro lado, ao disponibilizarem o código para todos aqueles que o quisessem ler, modificar, aperfeiçoar e retribuir de volta as suas melhorias, permitiram que uma comunidade de gente de diversas culturas, profissões e países, se juntassem para construir o que é, passados quase 11 anos, um dos leitores de ecrã mais utilizados no mundo por pessoas cegas e com baixa visão.

O NVDA começou como pouco mais que um brinquedo que, ao ser executado, permitia ler os menus e controlos do Windows. Nos primeiros anos poucos lhe deram a importância devida, excepto alguns programadores que encontraram algo novo para aprender e remexer (como este que vos escreve), entusiastas da tecnologia em geral (que muito contribuíram para a melhoria e divulgação do projecto) e gente com vontade e paciência para traduzir toda a interface e documentação do NVDA. A grande maioria destes colaboradores foram e são pessoas cegas ou com baixa visão, utilizadoras de leitores de ecrã, que, com o seu trabalho, tempo e dedicação, permitiram que fosse desenvolvido, pelos próprios deficientes visuais, num leitor de ecrã à medida das suas necessidades e aspirações.

Actualmente o projecto do NVDA é liderado pela NV Aches, Inc., entidade não lucrativa criada pelos programadores originais Mike e James com o objectivo de desenvolver o NVDA e outro software para pessoas com deficiência visual, e é financiado por empresas como a Microsoft, Adobe, Mozilla, Google, entre outras. Porém, sem o continuado apoio de tantos e tantos dos seus utilizadores, tradutores, caça-bugs e programadores, por esse mundo fora, cegos ou com baixa visão, não seria possível que existissem 30000 pessoas a usá-lo diária e gratuitamente. Em países como o Brasil - o país com mais utilizadores - julgo tratar-se de um passo importantíssimo na inclusão dos deficientes visuais. Isto para não referir a índia, China ou Irão.

Refira-se, como dado adicional, que a formação em informática da ACAPO contempla a utilização e configuração do leitor de ecrã NVDA, e na ACAPO o NVDA é, actualmente, indispensável para que possamos ter técnicos cegos, a dar suporte, remotamente, às infra-estruturas informáticas da ACAPO distribuídas por todo o país.

O NVDA não foi, de modo algum, o primeiro projecto de software desenvolvido nos moldes que descrevi, pelos próprios utilizadores, apesar de, em minha opinião, ter sido o de maior sucesso. Já nos anos 90, com o advento do sistema operativo Linux - também de código aberto - foram criadas ferramentas como o BRLTTY (para ligação de linhas Braille,) o Speakup ou o Emacspeak (leitores de ecrã), ainda hoje utilizados pelos utilizadores de Linux.

Por fim, resta-me reiterar, com base no NVDA e não só, que como cegos ou pessoas com baixa visão num mundo cada vez mais digital, é importante ter em mente que podemos tomar nas nossas mãos o destino das ferramentas que nos permitem estar e existir nesta nova realidade, tal como se tem feito em vários domínios da auto-representação,

Por decisão pessoal, o autor deste artigo não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico.